Ela trocou o peso de uma perna a outra e olhou para os lados com
desconfiança. As batidas altas, corpos que se mexiam no ritmo da música
ou que se agarravam pelos cantos... Estar na velha casa não mais lhe
trazia a segurança que outrora trouxera.
─ Você tem certeza que isto foi uma boa ideia? ─ Sua voz tremulava e suas unhas arranhavam freneticamente a alça de sua bolsa.
─ Mas é claro! Você finalmente recebeu alta, precisamos comemorar. E
você merece se integrar ao convívio social novamente ─ respondeu uma
jovem ao seu lado.
Charlotte olhou para os lados novamente. Os móveis haviam sido
guardados em outros cômodos de modo que a sala tornara-se espaçosa o
suficiente para todos os convidados, porém, ainda assim, sentia-se como
se estivesse em um lugar apertado.
─ Olhe ─ a jovem colocou uma de suas mãos sobre o ombro da outra ─, o
que aconteceu no passado, deixe no passado. A culpa não foi sua, Char.
Agora beba isto e você se sentirá melhor.
Ela entregou um copo com um líquido vermelho que pegara na mesa de comida. Charlotte fitou o copo por um tempo.
─ Obrigada, Jess.
As duas se entreolharam em uma comunicação não verbal que apenas elas
entendiam, em seguida, sorriram, como faziam quando eram crianças.
─ Assim está bem melhor. Continue assim ─ Jéssica a incentivou com uma piscadela.
Charlotte levou o copo até a boca e fez menção de que iria beber, porém parou no último segundo e cheirou o líquido.
─ Tem álcool nisto.
─ Bem vinda à universidade! ─ Gargalhou e bebeu um pouco de seu copo.
Um estrondo vindo da cozinha chamou-lhe a atenção. ─ Ai meu deus, estão
quebrando a casa. Já volto, Char.
Charlotte a observou partir, rumo à cozinha, até perdê-la de vista em meio à pequena multidão a sua volta.
Ela bebeu um gole de seu ponche pouco certa se deveria, afinal havia
recebido alta há pouco tempo. Entretanto, não saiu tudo como imaginara, o
líquido desceu pelo lado errado e ela engasgou em um ataque de tosse.
Um nó se formou em sua garganta.
Quando a tosse passou, ergueu a cabeça e estremeceu. O nó na garganta
apertou. Em um momento estava na casa de Jéssica e todos a olhavam; no
outro se viu de volta à casa, que um dia morara, cercada por aqueles
olhares acusadores mesmo de pessoas que, supostamente, deveriam
protegê-la.
─ O que ela está fazendo aqui? ─ Estava novamente na velha
casa, não muito longe da fonte de música. Sentiu uma tremedeira
incontrolável se apossar de suas pernas.
Novamente se viu dentro daquele quarto escuro, como uma sombra. A
cortina, a qual balançava suavemente com a brisa, deixava a pouca e
única luz entrar. O sol acabara de começar sua caminhada pelo céu.
─ Ei, ficou sabendo? ─ Ouviu alguém dizer.
─ Aquela garota não é aquela dos jornais de dez anos atrás? ─
Charlotte se virou, queria encontrar quem dissera aquilo, mas tudo o que
encontrou foram rostos e mais rostos. Com tantas pessoas ali era
difícil distinguir cada uma, mas ela reconhecia aqueles olhares, os
mesmos olhares...
Mais imagens surgiram em sua cabeça, sua mente queria mergulhar ainda
mais fundo naquelas lembranças que por tanto tempo assombraram-lhe os
sonhos. O nó na garganta apertou de novo. Sentiu como se o ar ao seu
redor tivesse ficado mais denso e pesado com todos os olhares que ainda
conseguia ver, mesmo de olhos fechados. E, bem ao fundo de todos, ela
ouvia a risada sádica daquele homem.
Abriu os olhos em um impulso, como quando acordava no meio da noite
de um pesadelo, bebeu todo ponche em um gole e disparou em direção a
porta de entrada da casa, as mãos pressionando os ouvidos. Gotas de suor
escorriam por sua pele, mas não sentia calor.
Do lado de fora, correu o máximo que pôde para longe da casa, ou ao
menos era o que pretendia antes de tropeçar em seu próprio pé e cair de
joelhos e mãos na grama. Tragou o ar como se não o fizesse há muito,
muito tempo, finalmente sentindo como se fosse capaz de respirar
novamente.
Lentamente seu coração desacelerou e sua respiração normalizou. Ela
levantou. Os joelhos doíam e estavam sujos de terra e grama, mas não se
importou, caminhou em direção ao balanço poucos metros a sua frente e se
sentou.
Com os olhos desprovidos de emoções, ela fitou a paisagem, inerte,
como em uma espécie de transe. Seus olhos registravam tudo o que
passava, a entrada e a saída de pessoas, o passar dos carros pela rua e o
piscar das luzes nos arranha-céus não muito distantes. Contudo, sua
mente estava longe demais, mergulhada em dolorosas lembranças, para que
registrasse tais informações.
Novamente estava naquele quarto cujas paredes, que outrora foram
brancas, estavam sujas de vermelho enegrecido. Cacos de vidros de
antigas luminárias se espalhavam por todo o chão enquanto o ventilador
de teto girava de forma caótica.
Assistiu sem qualquer reação quando grandes sapatos marrons
andaram em sua direção. A pessoa se abaixou, permitindo que seu rosto
entrasse no campo de visão, era um homem de cabelos grisalhos e pele que
delatava os sinais da idade. Os lábios dele se moveram como se
estivesse dizendo algo...
Passos não muito distantes a despertaram de seu devaneio. Ela
observou sem expressão durante a aproximação de um rapaz cabisbaixo ao
balanço, onde se sentou. Por alguns minutos, nenhum disse nada ao outro.
─ Você também se sente deslocada aqui? ─ Indagou. Ele a olhou
esperando por uma resposta, mas ela apenas balançou a cabeça
afirmativamente sem olhá-lo de volta. ─ Vim com alguns amigos para me
distrair ─ voltou a dizer fitando o céu ─, mas não deu muito certo.
Charlotte não respondeu, continuou parada em seu balanço apertando as correntes que o segurava com força.
─ Que falta de educação a minha, eu aqui falando e nem para me
apresentar... Me chamo Caio ─ em um instante, ele estava sentado no
balanço; no outro, ela o viu em pé a sua frente com a mão esticada para
ela para um aperto de mãos ─, e você?
Ela ergueu levemente a cabeça para olhá-lo. O rapaz devia ter a mesma idade que ela, vinte e dois anos.
Tão parecidos...
─ Charlotte ─ respondeu hesitante.
─ Então, Charlotte, o que te traz a esta festa chata?
─ Minha amiga Jess... ─ Ela hesitou novamente por um momento. ─ Quis comemorar minha saída do hospital.
─ Não me parece que está no espírito de comemoração.
─ Não... ─ respondeu fitando a grama. Antigas lembranças ainda a assustavam.
─ Eu também vim aqui para esquecer meus problemas... ─ Ele observou
as estrelas que brilhavam intensamente no céu naquela noite. ─ Está a
fim de dar uma volta por ai?
Você precisa voltar a se interagir com outras pessoas! Ouviu Jéssica dizer, como se ela estivesse ali presente.
─ Aceito o convite ─ respondeu com um meio sorriso e se levantou. Os
dois caminharam embalados pela conversa na direção oposta à velha casa.
─ Aonde estamos indo? ─ Perguntou Char, perdida e receosa. ─ Não reconheço este lugar.
─ Queria te mostrar uma coisa.
─ O quê?
─ Você verá, já estamos chegando.
─ Está meio escuro... ─ Ela observou em um surto de pavor.
─ O que você quer? Está tarde... ─ Charlotte bocejou. ─ Posso voltar a dormir?
─ Não, eu tenho uma surpresa para você. Troque de roupa e venha, te espero lá fora ─ disse o homem e, então, saiu do quarto.
Ela empurrou as cobertas para o lado e pulou fora da cama, pegou a
primeira roupa que encontrou na gaveta do guarda roupa e vestiu. Em
seguida, saiu do quarto.
O homem a esperava na sala com as chaves do carro em mãos.
─ Aonde vamos?
Ele se ajoelhou para que pudesse ficar na altura da menina e colocou as mãos grandes sobre o ombro dela.
─ Desde que a mamãe nos deixou, esta casa está muito sem vida.
Não há mais sorrisos e alegria aqui, apenas lágrimas e tristezas. Não
importa o quanto tentemos superar, a mamãe sempre estará em cada canto
desta casa e isso nos machucará.
─ Nós vamos nos mudar, papai? ─ Ela sabia que aquele homem não era seu pai de verdade, mas era o único que conhecia.
─ Sim, mas apenas se você gostar da nova casa. Você quer vê-la?
Ela balançou a cabeça positivamente.
Sentiu as bochechas queimarem quando antigas e dolorosas memórias
retornaram. Ela elevou a mão livre à bochecha e percebeu que
incontroláveis lágrimas escorreriam por elas.
─ Eu... Eu... ─ Tentou dizer antes de sua voz sumir. O coração
disparou e suas pupilas dilataram. Puxou violentamente a mão que era
segurada pelo rapaz e parou de andar. O rapaz virou-se e a olhou
confuso, ela não retribuiu o olhar. Ao invés disso, fitou o chão
enquanto lágrimas furiosas desciam em um ataque de pânico. ─ Não
posso... Não, não posso...
Caio se aproximou dela e a segurou pelos ombros e a sacudiu. Ela parou de balançar a cabeça e falar e o olhou.
─ O que você não pode, Char?
As lágrimas desaceleram, porém continuaram caindo. Sua respiração
normalizou um pouco e ela se acalmou. Em um movimento rápido, ela
retirou o canivete da bolsa, abriu-o e o fincou no pescoço do rapaz,
perfurando a carótida. Retirou o objeto e se afastou.
Caio abriu a boca como se tentasse gritar enquanto tentava pressionar
o corte com as mãos, mas a voz não saiu. A pele se tornava pálida e
fria conforme seu sangue esguichava a alta velocidade para todos os
lados. Lentamente seu corpo se tornou pesado e sua consciência se
esvaiu.
─ Por... quê? ─ Murmurou, caindo sem vida no chão.
O homem se aproximou dela e ela recuou até bater com as costas na
parede. Entre a parede e ele, sem ter para onde correr, com um
movimento rápido e certeiro, ela fincou a faca, que escondera embaixo do
short, no pescoço dele. Ele a estapeou, fazendo-a cair no chão. Depois
retirou a faca do pescoço.
─ Depois de tudo... ─ bradou pressionando o corte.
Ela se arrastou pelo chão até a outra parede e ali deitou,
lágrimas escorriam freneticamente pelo seu rosto. Os anos de abuso por
parte do padrasto passaram como um filme em sua mente enquanto ela o
assistia se debater no chão e destruir todo o quarto em seu último
suspiro de vida; sangue esguichava freneticamente do pescoço dele.
Charlotte continuou deitada onde estava, sem qualquer reação. Seu
único desejo era morrer, mas já não tinha mais vontade de se mexer.
Então, ali ficou até ser encontrada.
Quanto tempo teria passado? Charlotte não sabia dizer. Sua cabeça
latejava e as poucas lembranças que tinha eram imprecisas demais,
confusas demais. Uma onda de pavor percorreu todo seu corpo quando
percebeu que havia sangue em sua cabeça, em seu rosto e vestido. O que
teria acontecido?
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