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terça-feira, 28 de abril de 2015

Capítulo 16: Nero Pagami

A chegada ao Brasil foi conturbada. Todos os holofotes do mundo estavam ao redor do homem que criou uma tecnologia com a qual os países poderiam se defender contra as intempéries dos oceanos e das mudanças que ocorriam nele. Mas, com defeitos em torres bem como cálculos errados a respeito de tufões e maremotos colocaram em xeque a confiabilidade do sistema. Logo que chegou ao Brasil, ele foi a terceira maior cidade do país a fim de verificar as condições ideais de temperatura e pressão. Iria fazer algo que não fazia há muito tempo: inspecionar pessoalmente alguns de seus receptores, sua galinha dos ovos de ouro. O oráculo dos oceanos tinha um trabalho meio que ingrato a se fazer.

Mas não foi só nos países importantes que o sistema falhou. Em países periféricos que também adquiriram sua criação sofreram com a falha. Um deles, Filipinas, teve o maior tufão já registrado na história do país. Com ventos acima de 315 km/h, a intensidade daquela confluência formada sobre o oceano pacífico matou mais de duas mil e quinhentas pessoas. E essa intensidade não fora prevista por “Netuno”, nome da tecnologia criada por Nero. Ele, como qualquer outro líder empresarial, poderia esconder-se atrás de seus seguranças e assessores, porém quis ir ao público e ratificar suas falhas. Iniciou um grande recall e ofereceu descontos aos países afetados além de deixar bem claro que iria batalhar para melhorar aquilo que deixara o mundo mais seguro. Disse também que o Hayan – nome do tufão – pode ter sido uma coincidência do destino.

Como o ângulo incrivelmente desfavorável de entrada deste no conjunto de ilhas, a velocidade com que este se deslocou sobre o mar e a presença de ventos fortes na região antes de sua chegada, atrapalhou a medição correta do sistema. Dada às desculpas necessárias e um surgimento de uma atualização fizeram as ações de sua empresa disparar e atingir níveis altos desde sua criação. Mas ele chegou a Salvador, Bahia, a fim de explicar melhor a incidência maior de tufões e furacões mais fortes em algumas regiões e o surgimento de algumas intempéries em locais que nunca tiveram problemas com isso. O exemplo de Santa Catarina e seu ciclone Catarina ainda ecoavam na mente e alma do povo brasileiro.

Deu uma entrevista com exclusividade a um programa de horário nobre de uma emissora de televisão a respeito tanto do que fará dali em diante quanto das expectativas sobre as mudanças que andam ocorrendo no mundo.

— Você concorda com as visões dos novos ambientalistas de que o aquecimento global é o responsável pela frequência de tufões, terremotos e tsunamis? – perguntara a repórter que se identificou como Cristina Portinari.

— Não é difícil entender o raciocínio deste corpo crescente de especialistas em clima que associam o aumento da força e da frequência de fenômenos atmosféricos incomuns, como os supertufões, ao aquecimento global. – disse ele, com um leve sotaque italiano. — Tufões se alimentam, fundamentalmente, de água do mar aquecida. Com a elevação das temperaturas atmosféricas em função do aquecimento global, as águas do mar se aquecem mais e em áreas mais extensas. Se realmente existe essa relação, é um debate extenso entre quem acredita e quem não acredita no aquecimento. Mas se ficar comprovado através de vários estudos, dos quais estou participando, é evidente que novos Hayans surgirão em países que já sofrem com isso.

— E o Brasil? Como se localizaria nessas mudanças?

— O país é um porto seguro contra intempéries, mas um aumento do nível dos oceanos em outros lugares do mundo afetaria claramente o território, afinal uma grande parte do território brasileiro vive no litoral. Sobre tufões, seu país é cortado por uma corrente marítima fria, logo é difícil haver tufões no Nordeste e norte por exemplo. Mas ciclones podem se formar no sul e no sudeste, pois essa corrente marítima fria passa longe do litoral dessas regiões.

— Numa escala de um a dez, qual a probabilidade de ocorrer um ciclone no Brasil pelos próximos dez anos?

— Sete – respondeu secamente. — No Brasil, sete.

— Por que tão alto?

— Porque vocês já tiveram problemas com tufões. O Catarina prova que vocês, ou uma parte de vocês, não estão imunes a essas intempéries. Se você me apontar uma região, diria que a Sudeste e Sul, nove, o que no caso sobe a média de seu país.

— E sua tecnologia é capaz de prevenir isso?

— Não – respondeu ajeitando-se na cadeira. — Minha tecnologia nunca preveniu nada. Somente prevê quando acontecerá para que os governantes se preparem. Netuno calcula de quanto será a velocidade, o impacto, direção dos ventos, altura das ondas... Não previne, só prevê.

— E há alguma maneira de prevenir?

— Infelizmente não. A força da natureza sempre será mais forte que os humanos. Anteriormente, atribulavam-se as intempéries a deuses e deusas. De certa forma, há coisas na natureza que são desconhecidas. Pois sabemos como tudo é formado, mas somos capazes de prevenir ou impedir? Não. Logo, existe certo misticismo até entre os cientistas.

— Sua visita no Brasil marca um novo passo para a inserção deste país na rede Netuno e sua subsequente atualização, a tecnologia Anfitrite?

— Sim. Com Anfitrite, Netuno não somente prevê acontecimentos naturais, mas também funciona como uma espécie de radar de embarcações de forma altamente precisa. Todos meios de transporte têm essa tecnologia. Ela além de avisar ao piloto do que estar por vir, calcula também súbitas mudanças nos mares ou trombas d’água que surgem imediatamente. Isso é muito legal. Quanto menos surpresas existirem, melhor.

A entrevista terminara rapidamente depois dessa última pergunta. Muito por conta de outros compromissos que Nero Pagani tinha a fazer na cidade. Primeiramente alocar o Forte de São Marcelo para uma festa. Uma festa de consagração de um homem que conseguiu dobrar o tempo e espaço e as adversidades.

Iria, ali, testar uma nova forma de prever ciclones tropicais, de acordo somente com as correntes marítimas junto aos ventos que sopravam no oceano. Dizia-se que os nomes eram dados de acordo com as lendas das viagens dos monsenhores do mar. Índico fora dado porque banhava as cobiçadas Índias. Atlântico, por causa da famosa lenda da civilização de Atlântida, que se misturava também com um reino submarino do deus dos mares. E Pacífico porque na viagem de Fernão de Magalhães ao redor do mundo, o oceano não tinha ventos. Não tinha adversidades.

Contudo, Nero, por dentro enquanto caminhava cheio de segurança a seu carro, sabia. Fernão de Magalhães era uma das quatro reencarnações do deus dos mares mais famosas. Por isso o oceano foi pacífico, por isso ele foi domado. E ele só se lembrava disso por causa da interferência divina em suas memórias. Forçando-lhe a ver coisas do passado. Forçando-lhe a ser um deus predestinado ao sucesso e à vida nos mares.

Só que a ambição do senhor dos mares parou nas investidas pró-humanitárias de Nero. Os dois viviam em pé de guerra dentro de um só corpo e por vezes, quando seus amigos o viam falar sozinho, era ele conversando com o seu deus interior. Nero sabia que só chegara ali por causa do deus, todavia Poseidon matara de forma impiedosa sua mãe em um ataque de fúria quando seu irmão menor não chegava a ter meses de vida. Motivo? Desobediência perante a um ser superior. Isso afetou a vida do futuro oceanógrafo de uma forma incrível. Quando soube da história fez questão de aprisionar o deus em sua mente, na casa onde vivera por anos.

Só que a chave de abertura de sua casa na mente interna era um sentimento o qual Nero não poderia se dar ao luxo. Um sentimento que era compartilhado de maneira intensa entre ele e o deus.

A Raiva. O ódio.

Por isso sempre se via o gênio da família Pagani calmo e sereno. Sem demonstrações de raiva. E se Poseidon fosse libertado, um caos se instalaria porque o orgulhoso “ser” odiava a humanidade por tê-lo deixado de lado. Uma simplória alma reencarnando para ver a evolução dos humanos sem poder fazer nada, inclusive fazer seus recipientes lembrar-se das vidas passadas. Só ele poderia lembrar. Só ele tinha esse direito. Logo a solidão de milhares de anos tornara aquela pessoa rancorosa. Nero compreendia. Entendia.

Entretanto, se caísse na compaixão, Poseidon faria com o mundo o que ele fizera com sua mãe.

Seu Iphone tocou imediatamente quando ele adentrou no seu carro. Lisana teve dificuldades para contornar a situação e Vittorio engatou a primeira à medida que ela entrava no banco do carona. O italiano deixou tocar três vezes como de costume e atendeu o número conhecido.

— Xerxes – disse com um tom benevolente. – Como está, irmão?

Xerxes Pagani. Irmão mais velho de Nero por questão de um ano também estava no Brasil a fim de divulgar sua nova coletânea. Artista plástico por natureza, o talento dele despertou cedo para o surrealismo. O homem era até conhecido como o novo Salvador Dalí. Os dois eram muito próximos, e fora Xerxes quem cobriu o irmão no episódio da morte da mãe, tendo em vista que o talento de seu pequeno irmão na época já florescera e tinha um futuro brilhante pela frente. Logo o mais velho assumiu a responsabilidade de criar algo que parecesse suicídio por conta de depressão pós-parto. E foi assim que a polícia italiana encerrou o inquérito da morte de Eleanor Pagani.

— Excelente. A exposição está sendo um sucesso e tanto. – O irmão da versão humana do deus dos mares estava com um espírito radiante na voz. – Mas liguei por outra coisa.

— Qual seria?

— Sua festa no forte de São Marcelo... O quão longe você está disposto a ir pela tecnologia Anfitrite?

— O céu é o limite – respondeu rapidamente esboçando um leve sorriso –, ou diria, o fim do oceano é o limite. Já mapeamos tudo, meu irmão. Agora é somente colocar a tecnologia em prática e acidentes como o do Voo Air France serão solucionados mais rapidamente. Máquinas poderão submergir a qualquer profundidade, poderemos ter olhos e ouvidos no fundo do oceano, entender melhor como funciona o regime das correntes de perto. Mapear tudo e explorar os confins das imensas porções de água do planeta fará com que entendamos melhor como ocorrem as catástrofes e quiçá impedi-las.

— O idealismo corre forte em suas veias, correto? Sempre pensei que diria isso. – Xerxes suspirou forte no outro lado da linha. – Mas que nomes são esses na lista?

— Você se refere aos que eu adicionei a última hora?

— Sim. Não nego que chamar o De Wjier, que foi eleito o melhor goleiro da última copa pela Bélgica, seja uma cartada de mestre. Mas Charlotte Wickery? Roman Daniels? Katerina Ventura? Nikoletta Benaki? Além de muitos outros... Quem são esses?

— É uma história longuíssima, mas acredite, são importantes para a criação do sistema que vai entrar em circulação no próximo final de semana.

Eles encontravam-se na segunda e a festa seria no sábado à noite.

— Se você diz... Aprendi a confiar em você desde a morte da mãe, nunca erra seu safado.

— Não é questão de errar ou acertar. Tudo é probabilidade. Tudo é calculado, planejado. Por isso, é impassível de erros.

— Quando a exposição terminar, eu retorno. Só queria saber o que está aprontando...

— Na hora certa, você vai saber. Como sempre soube...

Despediram-se cordialmente e Nero recostou a cabeça no banco de trás do Mercedes que estava. Recordou-se de um encontro, meio ocasionado pela sorte. Só que ele sabia que a sorte era uma mistura, uma junção de capacidade versus a oportunidade.

Ele se recordou do encontro que mudou seu jeito de pensar sobre o mundo. Recordou-se de quando se uniu a uma pessoa que ele não gostava, mas que era necessário. Um rapaz de nome estranho, mas de visões aterradoras. E ele se chamava Dimitri Arkadyevich Kalagin... Ou quem conhecia sua verdadeira faceta o chamava pelo deus que ele era.

Apolo.

***

Nero estava tomando um café da manhã perto da alfaiataria a qual costumava fazer seus ternos e roupas sobre medidas, quando avistou ao longe um homem cujas características o fazia pensar que o conhecia de algum lugar. Olhos verdes com pigmentos amarelos, e cabelos louros acinzentados. Uma pele esbranquiçada.

Lembrava muito um russo branco, da raça originada em Novgorod com poucas influências mongóis. Ainda que estivesse intrigado, deixou o homem tocar a sua vida, porém uma memória passada lhe acometeu rapidamente. Aquela pessoa não era qualquer uma. Era um o qual já fora seu rival na guerra de troia. Na famigerada guerra pelo amor de uma donzela, deuses se dividiram no apoio às duas facções e a guerra estendeu-se por dez longos anos com uma vitória grega, mas à custa de grandes heróis da era antiga. Por que aquele homem estava no mesmo lugar que ele, e na mesma hora? Era coincidência?

O coração de Dimitri congelou quando ele avistou o deus dos mares sentado em uma das mesas localizada na calçada do café. Por este motivo odiava o destino, não importava quantos anos ou encarnações se passassem, os seus caminhos uma hora ou outra se encontravam. Não eram apenas as más feridas da guerra de Tróia que faziam sua respiração ficar pesada e os músculos tensos. Havia uma ferida muito mais recente, algo que há semanas tentava esquecer. Mesmo com todos os fatores, que faziam daqueles olhos azuis profundos um sinal de mantenha distância, o russo-brasileiro decidiu sentar-se em uma mesa próxima.

— Diria que seria uma coincidência muito grande, se eu acreditasse em destino, Apolo — disse Nero com um ar debochado tomando um gole de sua xícara de café. — O que fazes na Itália?
— Trabalhando. Ao contrário de alguns que só vem aqui para gastar seu dinheiro em resorts e restaurantes chiques - respondeu, devolvendo o deboche.

— Assim como você, também saí da merda... Porém conte-me como anda a sua vida aqui na Itália e o que eu posso fazer para lhe ajudar... — Dessa vez ele abocanhou um pedaço de sua torta que acompanhava o café.

— Eu não preciso de ajuda, obrigado — discordou de uma maneira seca, colocando um agradecimento apenas pela educação. — Eu e minha parceira nos apresentávamos no restaurante Acheloo. Não me surpreendo que nunca tenha me visto em seus inúmeros jantares. Afinal não deixava de observar Vittoria, mesmo quando estava acompanhado. As coisas nunca mudam, não é mesmo?

— Era uma estrela no meio de normais. Mas ela sempre recusou meus convites. Sobre você, nunca reparei em ninguém menos que ela.

— Recusava por minha causa, mas isso foi antes de lembrar quem eu era. Ela está livre agora, e estará mais segura com qualquer um que não tenha meu passado. — Ele calou-se abruptamente, estava se abrindo demais. Infelizmente esse era um problema recorrente.

— Tudo bem. Eu reconheço uma derrota de longe. — Nero sorriu à medida que levava mais uma vez a xícara à boca. — Mas não éramos para estar tão próximos um do outro. Reconhecer nossas vidas passadas, ou algo do tipo. Tínhamos que passar despercebidos. Como sempre passamos. O que houve Apolo? Por que realmente estamos aqui agora?

Era difícil para ele se acostumar novamente com seus poderes de vidência, algumas vezes até os esquecia. Concentrou-se então, e deu uma resposta:

— O futuro nunca esteve tão nebuloso e indefinido. Uma guerra está vindo, mas não sabemos quem é o nosso inimigo. Ele é poderoso o suficiente para me confundir, por enquanto. Nossa existência... A existência de nosso lado divino está em jogo.

— E o que podemos fazer para vencer a guerra que está por vir?

— Precisamos no unir — respondeu, não demonstrando nenhum entusiasmo.

— União não é o forte do panteão grego, mas mesmo assim não quero morrer. Diga os nomes dos deuses e suas versões mortais. Eu dou meu jeito de reunir todos.

— Não estou com meus plenos poderes. Mas irei fazer o melhor possível. — Ele se concentrou. — Alguns já se encontraram, em... São Francisco no Brasil.... Katerina... Ventura poderá te ajudar. Meu pai está no Alasca... O chamam de Daniels... Vai encontrá-lo em vários artigos sobre saltos radicais. A garota Di Angelis... ou melhor, Nemesis, está na Espanha. Já a minha irmã... deixe ela comigo.

— Por que deixar ela com você? — Murmurou Nero, sorrindo—- Está bem então...

O italiano levantou-se e colocou dois convites em cima da mesa da versão humana de Apolo.

— Vá ao Brasil com sua irmã a essa festa que darei daqui a algumas semanas. Tudo bem para você?

— Tudo, pelo Olimpo!

— Isso me soou irônico, Apolo...

— Se preocupe em achar os outros. Eu estarei presente quando o dia da festa chegar.

— Eu espero. Eu espero. 

Nero ajeitou o terno e com um aceno se despediu daquele com que já compartilhou uma cadeira no famigerado Olimpo.

***

De volta a si, ele simplesmente sorriu. Odiava planejar, mas era necessária a sobrevivência da sua espécie. Poderia até mesmo tentar a sorte e deixar eles ao léu e enfrentar as forças desconhecidas juntas...

— Não... Quer queira ou não, quando se está ameaçado, você dá tudo de si somente pela singela esperança da sobrevivência.

Sua Mercedes seguiu via acima, passando pela Avenida próxima ao porto, subindo então o monumento chamado de Contorno até ser introduzido a um portão mecanizado com os seguintes dizeres: Morada dos Cardeais. Seria ali que ele ficaria até o presente momento da festa, só que obviamente, dado seu jeito de ser, acabaria por aproveitar as doçuras e festas da belíssima capital do estado da Bahia...

Capítulo escrito por Vini Ribeiro.
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