O sabonete líquido estava a poucos centímetros de seus olhos, Susan fitava-o com espanto.
— Como isso é possível? — Pensou alto.
— São os seus poderes.
A
jovem fitou o espelho logo atrás do objeto, a fonte da voz que ouvira.
Se não tivesse olhado com atenção, juraria que era apenas seu reflexo e
que estava ouvindo coisas, porém já tinha visto coisas estranhas demais
para acreditar nisso. Percebeu que estava diante de si mesma, mas não de
qualquer reflexo, era uma versão mais velha e com um olhar desprovido
de brilho.
— Poderes... — Repetiu ela voltando a fitar o sabonete,
o qual flutuava até a altura de seus olhos a poucos centímetros de sua
face. — Então sou eu...?
— Sim, e em breve poderá fazer muito mais do que levitar alguns objetos pequenos.
— Alguns? — Ela olhou de volta para o reflexo no espelho, confusa.
Onde
a realidade acaba e a fantasia começa? Susan não fazia ideia, tudo o
que sabia era que seus conceitos estavam sendo testados e elevados ao
limite.
— Você tem um dom natural para a magia, Susan. É a mais
poderosa que eu já conheci. — Ouviu Hécate dizer, mas não deu muita
atenção.
Enquanto se afundava em pensamentos conflitantes, mais
objetos, um a um, levitavam como se todo o ar do lugar tivesse se
transformado em líquido e eles estivessem boiando a mercê das correntes
de ar. Contudo, uma batida violenta na porta de seu quarto a despertou,
em um susto, de seus devaneios e fez todos os objetos caírem no chão,
provocando um estrondo.
— Susan? — Eleonor gritou receosa do outro
lado da porta, batendo com ainda mais força. — Ouvi barulhos... Você
está bem, querida?
— Estou — respondeu Susan abrindo a porta. Eleonor entrou no mesmo instante, preocupada.
Ela
examinou cada centímetro do quarto de Susan com os olhos, o qual estava
todo revirado. Os preciosos livros da menina estavam todos espalhados
pelo chão, alguns abertos e outros fechados; objetos de decoração
estavam por todo canto, muitos espalhados pelo chão, outros, ainda,
quebrados... Tudo parecia fora do lugar ou quebrado, mesmo os móveis
mais leves.
— O que aconteceu aqui? — Indagou Eleonor.
Susan
abriu a boca para responder, porém a fechou na mesma hora quando deu
uma boa olhada nas condições do quarto. Como poderia explicar que ela
bagunça toda foi causada porque ela deixou tudo cair enquanto os
levitava? Como explicar algo que, supostamente, não existe?
— Eu estava procurando uma coisa — mentiu.
— Encontrou o que procurava?
— Não...
Eleonor arqueou uma sobrancelha e virou-se para Susan.
—
O almoço será servido em alguns minutos. Em duas horas você tem uma
consulta com seu psicólogo. — Ela deu alguns passos em direção a porta,
mas parou antes de atravessá-la e virou-se para olhar o quarto mais uma
vez. — Vou mandar alguém vir arrumar essa bagunça.
— Obrigada.
Susan fechou a porta logo que Eleonor se afastou da porta. Então, apoiou-se na porta e suspirou.
Isso tudo é loucura, pensou enquanto olhava para as coisas fora do lugar em seu quarto, e, então, retirou-se para seu banho.
O
sol ainda estava terminando sua corrida pelo céu quando Susan chegou e
viu todas as luzes acesas. Ela entrou e se deparou com um cenário
bastante incomum: a casa parecia estar deserta. Estranhou, pois, apesar
da casa ser grande, havia muitos empregados que circulavam por todo
canto limpando-a dia e noite. Entrar e não ter alguém esperando por ela
nunca acontecera em seus dezoitos anos de vida.
— Eleonor? — Sua
voz ecoou pelas paredes vazias, provando o que já sabia, não havia
ninguém em casa. Uma aflição se instaurou dentro de si. Teria acontecido
alguma coisa?
Ela continuou caminhando pelos corredores e
entrando de cômodo em cômodo a procura de alguém, sem sucesso. Passou a
correr, ao invés de andar, e arfar enquanto vasculhava cada canto. A
sensação de estar sozinha naquele lugar a apavorava e sufocava.
Uma
voz, a princípio indistinta, ao fundo, em algum lugar distante, a fez
ter alguma esperança. Ela correu se aproximando do ponto de onde vinha a
voz, a qual fora se tornando cada vez mais nítida e ela reconheceu,
mesmo não estando perto o bastante para entender o que falavam. Eram
duas vozes femininas, uma de sua avó, Mary, e outra de Eleonor.
Conforme
se aproximava, conseguiu ouvir pedaços da conversa. As duas pareciam
discutir sobre alguma coisa com suas vozes alterada. Porém, só conseguiu
descobrir sobre o que quando se aproximou o bastante da porta do cômodo
onde estavam para ouvir toda a conversa.
— Olha só o que você fez, Eleonor — gritou Mary. — Essa sua mania de protege-la de tudo só a está estragando.
— Susan não é uma boneca que você pode usar a seu bel prazer — rebateu Eleonor com desprezo.
Ela parou a um passo da porta. Estão falando de mim?
Perguntou-se e ficou tentada a ouvir o restante da conversa, então se
escondeu atrás da parede de onde não a veriam em nenhuma parte do
cômodo.
— Não. Ela é a realização de todos os nossos desejos, de todas as nossas ambições.
— Suas ambições — corrigiu Eleonor.
— Você concordou com tudo isso quando aceitou carregá-la em seu ventre — Mary rosnou de volta antes de voltar à compostura.
—
O quê? — Antes que pudesse perceber, Susan se colocou na frente da
porta, que estava aberta, e se fez visível. O choque daquela informação a
deixara sem cor em sua pele.
— Susan! Você...
— Eu ouvi
tudo — cortou a menina enquanto adentrava o cômodo: um grande escritório
com várias estantes, uma escrivaninha, um sofá e algumas poltronas. Ela
se sentia como se tivesse sido apunhalada pelas costas.
Eleonor, por outro lado, estava assustada com a presença de Susan e sua declaração.
— Então toda a minha vida foi uma mentira? — Perguntou Susan.
— Elizabeth era uma incompetente... — Começou Mary antes de ser cortada e sua irritação aumentar.
—
Mary, não, por favor — implorou Eleonor. Lágrimas começaram a se
acumular em seus olhos e escorrerem lentamente pelo rosto. — Ela não
precisa saber desta forma.
— Você já a protegeu demais, está na
hora dela saber a verdade — bradou Mary, que andava de um lado para o
outro, visivelmente alterada.
— Deixe-me con... — Eleonor tentou dizer em vão.
—
A mulher que você pensou ser sua mãe era estéril e uma incompetente —
continuou Mary, ignorando completamente o que Eleonor dizia. — Ela não
foi capaz nem de me dar uma neta, então precisei intervir. — Apesar da
idade, Mary se movia com o vigor de um uma mulher jovem.
— Então...? — Ela olhou para a governanta e depois de volta a Mary.
Mary
anuiu. Susan olhou de volta para a mãe, sem saber o que dizer ou o que
pensar. Lágrimas teimosas escorriam pelo rosto dela enquanto um nó se
formava na cabeça da menina.
— Susan, minha menina, eu...
Eleonor
se aproximou, com os braços abertos, da menina, que reagiu com um passo
para trás. Susan percebeu, com certa melancolia, a tristeza que sua
reação causara em sua mãe, mesmo quando tentou disfarçar.
— Você e meu pai... — Sua voz falhou por um instante, sentia-se estranha só de pensar na possibilidade. — Eram amantes?
Olhando-a
agora, até que conseguia notar algumas semelhanças, como o formato do
rosto ou a cor dos olhos. Também tinham a mesma altura. Mas ainda era
muito difícil de acreditar que tudo aquilo fosse verdade, apesar de que
agora algumas coisas faziam sentido na cabeça dela.
Por tantos
anos se perguntou porque Eleonor nunca tinha se envolvido com alguém ou
porque nunca quis formar uma família. Ela sempre se dedicou tanto à
Susan e foi como uma mãe para ela porque, na verdade, ela era sua filha, sua família.
— Não, querida, nunca tivemos nenhum envolvimento. Sua concepção foi através da ciência.
— Você quer dizer reprodução assistida¹?
Eleonor balançou a cabeça afirmativamente.
Susan
recuou mais um passo. Ela gostava de Eleonor, gostava de verdade, e
descobrir que ela era sua mãe verdadeira poderia até aumentar o
sentimento que já tinha. Mas naquele momento, a única coisa que sentia
era que estava sufocando com aquela enxurrada de informação. A
necessidade de sair dali e respirar se tornava cada vez maior. E foi o
que fez, correu em direção à porta. Contudo, esta se fechou em uma
batida forte antes que pudesse cruzá-la.
— Onde pensa que vai, mocinha? — Inqueriu Mary.
—
Sair daqui. Não é óbvio? — Ela agarrou a maçaneta da porta e a girou
para abri-la. Girou a maçaneta de novo, e de novo e depois a chave, sem
sucesso. A porta estava estranhamente trancada.
— Não, não vai.
Uma
força puxou a menina até uma poltrona. Esta, por sua vez, moveu-se até o
centro do escritório, deixando-a atônita e de olhos arregalados. Como
aquilo era possível?
— Depois de tudo o que fiz para chegarmos até aqui, você não irá simplesmente embora, menina! Ainda temos muito o que conversar.
Eleonor
tentou partir em defesa da filha, porém Mary foi mais rápida. Mary
criou uma parede de ar que a empurrou para um dos cantos do cômodo
enquanto uma placa invisível a amordaçava e correntes, também
invisíveis, enrolavam-se por todo o corpo, deixando-a incapacitada de se
mexer. Ela se remexeu o chão, lutando contra as amarras em vão.
—
Sabe qual é o seu problema, Eleonor? — Mary a olhou com desprezo,
sentada em uma poltrona do outro lado do escritório. — Você é fraca.
Nunca teve coragem para fazer o que era preciso. Sempre foi uma boneca
inútil.
As correntes ao redor da mulher se apertaram, fazendo-a
grunhir de dor para o divertimento de Mary. Susan se remexeu na cadeira,
mas também não conseguia se mexer. Era como se todo o seu corpo do
pescoço para baixo estivesse paralisado por algum tipo de feitiço.
— Não gaste suas energias atoa, querida. Eu me garanti para que não pudesse se mexer ou mesmo usar sua magia.
— O que você quer? — Rosnou Susan.
—
Eu quero que fique ao meu lado, Susan. Se ficar ao meu lado, poderá ter
o mundo aos seus pés. Ao meu lado, farei de você a bruxa mais poderosa
deste mundo, será a minha sucessora. Pessoas como Roger nunca mais irão
te incomodar e ameaçar novamente. Poderá ter tudo o que quiser, minha
neta. O que me diz?
Susan a olhou de soslaio. O que dizer de sua
avó? Aquela Mary a sua frente era uma pessoa completamente diferente da
avó gentil que conhecia. Parecia outra mulher, uma amarga e ambiciosa.
Ela se perguntou se a avó que conhecia existia em alguma parte de seu âmago ou se era tudo mentira.
—
Minha resposta é não — respondeu sem nem pensar duas vezes —, apesar de
que não acredito que ela tenha alguma relevância, visto que você me
prendeu nesta poltrona.
— É uma pena. — Susan notou a decepção e a
tristeza tomarem conta do olhar e da voz de sua avó.
— Eu até que
gostava de você, minha neta. É inteligente e determinada, me faz lembrar
de mim mesma quando tinha a sua idade.
— Eu não sou como você —
rosnou novamente, cerrando os dentes. Tentou cerrar os punhos, mas, ao
invés disso, conseguiu apenas mover os dedos por alguns milímetros.
—
A vida se encarregará disso, querida. Quando não tiver mais ninguém;
quando a vida te tirar tudo; quando ver todos os que amam morrer, um a
um, e continuar viva, você será exatamente como eu. É só uma questão de
tempo. Tentei fazer do modo fácil e te poupar deste destino, mas como
recusou minha oferta, faremos do modo difícil.
Susan escutou os
gemidos abafados de Eleonor, que aumentavam à medida que as correntes
invisíveis apertavam seu corpo com mais força. Tentou se remexer na
poltrona, uma tentativa inútil que não deu em nada.
— Desista,
querida. A única forma de salvar sua mãe é aceitando minha proposta. — O
tom de voz de Mary passava tranquilidade. Ela estava convicta de que
havia ganhado a guerra.
— Por que a envolver nisso?
— Porque ela é um meio de te controlar. Você é apegada demais à ela. Até onde iria pela vida dela?
Mary
retirou a amarra da boca de Eleonor e apertou as correntes, fazendo-a
gritar ainda mais alto. Aquilo soou como uma tortura para Susan, que não
sabia o que fazer. Mary já tinha chegado até aquele ponto para
conseguir o que queria, não havia nenhuma garantia que aceitar sua
oferta libertaria Eleonor das mãos da avó, pelo contrário, as
possibilidades de se tornar refém dela para sempre eram altas. Porém,
pelo menos ainda continuaria viva.
— Se a matar, nunca terá o que quer de mim. — Tentou ganhar.
— Você que se engana, querida, há várias formas de controlar uma bruxa destreinada.
—
Deixe-me... morrer... — Arfou Eleonor entre gritos de dor. Lágrimas
escorreriam por seu rosto e se acumulavam no chão, onde uma pequena poça
se formou.
— Cale-se — Mary ordenou em fúria e a amordaçou novamente.
—
Não! Eu me recuso a descobrir que minha mãe está viva e perdê-la no
mesmo dia. — Um ódio cresceu dentro de si. Em parte por não saber o que
fazer, em outra por nunca ter percebido quem sua avó era de fato.
Talvez, se tivesse descoberto sobre os poderes há mais tempo, não teria
acabado daquele jeito. Mas ela sequer podia controlar sua magia...
Você é mais forte do que isso, concentre-se, encorajou a voz em sua cabeça dizer.
Ela
seguiu o conselho da deusa e se concentrou. Com os olhos fixos em Mary,
primeiro tentou quebrar as amarras de Eleonor, o que se mostrou bem
difícil no início. Tentou imaginar as correntes se partindo e a amordaça
se dissipando, mas nada parecia fazer efeito. Nada do que imaginava
funcionava.
Então algo mudou, uma sensação estranha percorreu por
todo seu corpo. Sentiu uma energia percorrer por suas células como a
eletricidade percorria um cabo de energia. Sentiu o ar ao se redor
vibrar e se aquecer até tornar a sala quente demais para uma noite de
outono na Inglaterra. Pôde ouvir o pulsar dos corações de todos,
inclusive dela, em sua cabeça enquanto todo o resto ficava mudo.
Então
ela viu, em sua cabeça, uma pequena corrente de ar. Viu todos os elos
que a compunham. E, para quebrá-lo, ela sabia o que tinha que fazer.
Aqueceu ainda mais o ar até que uma chama, visível apenas em sua cabeça,
aparecesse e consumisse todo aquele ar, como um monstro engolindo sua
presa de uma única vez.
Ela ouviu um estalo que a trouxe de volta
para a sala onde estava bem a tempo de ver um anel de sua avó quebrar e
queimar a carne onde estivera. O objeto caiu, esfarelando-se durante a
queda até restar apenas as cinzas levadas pelo vento. As amarras entorno
de sua mãe se dissiparam, libertando-a.
Mary se levantou em um
impulso e susto, porém Susan não a esperou dizer alguma coisa.
Concentrou todo aquele poder que percorria seu corpo para impedir a avó,
e uma guerra invisível se iniciou entre elas.
Eleonor se sentou no chão, apoiando as costas na estante, e assistiu a tudo sem forças para fazer alguma coisa.
Susan
apertou os dedos nos braços da poltrona, arranhando-os com suas unhas,
enquanto se concentrava em uma única coisa, em um único barulho, o
pulsar daquele débil coração. As luzes de toda a casa piscaram e depois
se apagaram após uma pequena explosão, deixando tudo no escuro. Em
seguida, a luz daquele aposento acendeu novamente, apenas com a metade
da fase, enquanto o resto continuava na escuridão. Mary tentou lutar e
conter aquele poder, mas aquela era uma guerra a qual ela não tinha
chances.
Não demorou muito para que Mary sentisse uma forte dor no
peito e, em seguida, uma falta de ar. Ela se segurou no braço da
poltrona com uma mão ao mesmo tempo em que apalpou o peito com a outra.
Sentiu uma dor sufocante e excruciante forçá-la se abaixar até restar
apenas o chão frio, onde deitou e tentou desesperadamente inflar os
pulmões, em vão.
Ela olhou para a neta uma última vez e um sorriso se estendeu por seu rosto.
— Você é exatamente como eu, Susan. Sempre fará o que for preciso para conseguir o que quer.
Ouvir
aquelas palavras a fez perder a concentração. Seus olhos ganharam
novamente vida e brilho, as mãos sangrentas soltaram a poltrona e sua
expressão séria relaxou. Os dedos doíam onde as unhas haviam quebrado e
farpas de madeira havia cortado.
O que estava fazendo?, pensou. Mas um pouco e teria matado sua avó, que inspirava com força e tossia.
—
Não — respondeu, a voz ríspida e sem emoção —, não me tornarei alguém
como você. Por isso eu te amaldiçoo, Mary Blair. Você viverá. A partir
desde momento, você viverá eternamente aprisionada no corpo de uma
mulher idosa, sem ser lembrada, sem ser reconhecida, sem ter dinheiro,
sem casa, sem nada. Vagará neste mundo como uma ninguém até que todo o
mal que causou às pessoas seja pago na mesma moeda. E quando a sua
dívida for paga, apenas a morte lhe aguardará. — Susan se levantou de
sua poltrona e estendeu sua mão à avó. Uma luz negra desprendeu do corpo
enrugado de Mary e se dissipou no espaço entre elas. — Seu corpo nunca
mais sustentará e produzirá magia novamente.
Mary tentou enfeitiçar novamente Susan, mas nada aconteceu para o espanto e raiva da idosa.
— Você não pode fazer isso comigo, menina! Eu sou a sua avó, eu criei você. — bradou.
— Adeus, vovó.
Em
seguida, um buraco sem fundo se abriu embaixo de Mary, onde foi sugada
até desaparecer. O buraco se fechou logo depois. Susan o fitou por um
momento, triste e confusa. Não como quando encontrou Hécate pela
primeira vez em seu sonho. Naquele momento, a deusa forçou muitas
memórias de uma vida passada para que voltassem todas de uma vez,
fragmentando sua mente. O que Mary fez foi retirar seu chão e deixá-la
mergulhar em um abismo sem fim. Tudo o que acreditava ou o que achava
ser verdade sobre sua vida não passava de uma mentira.
Caminhou
até a porta, parando a dois passos dela. Olhou para o lado e viu Eleonor
dormindo sentada. Seu corpo estava cheio de escoriações e hematomas,
mas iria viver, para o alívio de Susan.
— Nem tudo foi uma
mentira, Susan — sussurrou Eleonor. — Richard e Elizabeth te amaram e te
protegeram até o fim. Você sempre foi a filha deles.
Susan não
respondeu, ao invés disso, estendeu a mão para a mãe e a transportou
para o quarto com a magia. Atravessou a porta e seguiu para a entrada da
mansão, caminhando em silêncio.
Muita coisa havia acontecido
naquela noite e ela precisava pensar em tudo aquilo. Precisava respirar
ar puro e sereno, como o da clareira que gostava de ir para pensar, para
onde ela se dirigiu. Arrastou seu pequeno corpo para dentro da floresta
particular, em algum ponto qualquer, e desabou na terra sem forças para
se levantar novamente.
O que fará agora?, Hécate perguntou em sua cabeça.
—
Eu não sei — respondeu com sinceridade, as primeiras lágrimas caindo de
seus olhos. Ela olhou para o céu estrelado, ainda deitada na terra.
Aquela era a última noite de lua nova.
Há uma coisa que preciso te mostrar.
Não perguntou o que, apenas deixou que as imagens viessem a sua cabeça.
Primeiro
viu duas pessoas conversarem sobre ela, um homem alto e de aparência
asiática e uma mulher bonita de olhos negros. Nyx e Thanatos, ela soube
de imediato. Eles conversavam sobre lhe fazer uma visita.
Em
seguida, a imagem mudou. Os dois não estavam mais falando dela. Estavam
ocupados demais trocando amassos e carícias em cima da mesa.
A
imagem mudou novamente, e dessa vez não havia mais pessoas. Nada de Nyx
ou Thanatos. Havia apenas destruição para todos os lados em que Susan
olhava, escombros sobre escombros se espalhavam por todo o lugar,
árvores estavam caídas, trilhas e ruas destruídas. Água se empoçava em
cada canto como se um furacão houvesse passado por aquele lugar e
tivesse devastado tudo.
Então a imagem desapareceu e ela
acordou, de sobressalto, na floresta. O coração palpitava com força em
seu peito, a destruição ainda viva em sua memória. Um arrepio percorreu
seu corpo afugentando o calor e a cor de sua pele. Levantou-se e se
encaminhou de volta para casa, sabia exatamente o que deveria fazer.
Susan
olhou para o lago a sua volta e apreciou o clima agradável. Com apenas
uma estreita ponte de madeira bem decorada e iluminada como acesso ao
coreto, ela estava cercada por um bonito e grande lago onde peixes,
patos e outras aves selvagens faziam de sua morada. Não muito distantes
das margens, uma floresta se fazia presente com suas majestosas árvores.
Era bonita a paisagem, uma das melhores de sua propriedade.
Depois
olhou para uma pequena e bem arrumada mesa a sua frente e suspirou.
Havia três cadeiras dispostas de maneira simétrica ao redor da mesa,
sendo apenas duas vazias, e uma xícara de porcelana para cada uma. No
centro estava um bule que exalava o aroma adocicado da camomila e um
pote com cubos de açúcar, tudo pertencente ao mesmo jogo de chá.
Olhou
novamente para o lago quando algo lhe chamou a atenção. Mesmo sem uma
brisa, a água se agitava ao redor do coreto, assustando pássaros e
peixes que fugiram ou se refugiaram no fundo do lago. As árvores também
iniciaram sua dança na floresta e criaram uma nuvem de poeira ao redor
do lago.
Ela sorriu, sabia que seus convidados estavam chegando.
Não
demorou muito e um redemoinho de fumaça negra se formou não muito
distante da mesa onde estava sentada. Duas pessoas, um homem alto de
feições asiáticas e uma mulher cujos olhos lhe faziam lembrar a própria
noite, saíram antes da névoa se dissipar atrás deles.
— Eu ainda
não me lembro muito sobre o meu passado, mas me lembro de você, Nyx a
nascida do caos, a primeira a andar neste mundo após o caos, a domadora
de homens e deuses, a deusa da morte, a rainha do mundo das trevas, a
soberana da noite e também a minha mãe¹. E você — ela olhou
rapidamente para o homem ao lado da imponente mulher —, suponho que seja
Thanatos. Sabia que viriam, estava aguardando-os.
— O mensageiro
da morte e líder da maior seita de assassinos... — O deus de aparência
asiática sorriu e ajeitou seu terno antes de sentar-se defronte a
bondosa anfitriã. — Ao seu dispor...
— Susan — ela pronunciou lentamente, o nervosismo da jovem a sua frente era quase palpável. — Finalmente.
— Espero que estejam servidos a me acompanhar em meu chá. — Ela indicou para que Nyx sentasse na cadeira vaga.
Nyx sorriu graciosamente e sentou-se ao lado de Susan
— Estamos aqui para lhe oferecer um acordo, filha.
— Que tipo de acordo? — Indagou entre um gole e outro de seu chá.
—
Desastres se aproximam. — Ela olhou para Thanatos por alguns segundos. —
Não queremos que uma das nossas esteja à mercê disso, especialmente
você, Hécate. Nós queremos você conosco.
A simples menção a
palavra desastre fez Susan estremecer. A imagem de destruição continuava
viva em sua mente e martelava como um sinal de aviso.
— Desastres acontecem todos os dias. — Tentou disfarçar sua inquietação com um tom de voz ameno.
—
Mas não como o que acontecerá — disse o deus, saboreando tranquilamente
o chá, e fazendo o que sabia de melhor: observar. — Nós temos um plano,
e nele você está inclusa. Você pode ser a chave para a reconstrução do
mundo, se ficar no nosso lado. O que é um desastre se não a habilidade
alheia a se erguer? Conosco, podes controlar tal ressurreição. Não seria
algo inteiramente de seu agrado?
— Você poderia controlar seus poderes. Teria o equilíbrio.
Um
brilho surgiu em seus olhos quando ouviu a palavra "poderes", mas logo
se apagou. Ansiava por respostas e por controle daquilo que um dia
poderia ferir quem amava, porém sabia, por experiência, que nenhum
caminho fácil era o melhor.
— Engraçado, vocês falam em
ressurreição antes mesmo da suposta destruição. Falam com tanta certeza
de que acontecerá que até parece que serão os culpados — disse e, em
seguida, bebeu um gole de seu chá.
— Susan, não existe somente nós
três espalhados pelo mundo — Thanatos manteve a elegância que aprendera
ao subir na vida —, existem outros deuses. Enquanto lutas para manter o
controle, tem alguns que já o perderam e recuperaram-se somente depois
do estrago feito. Um exemplo do que pode está por vir. Uma faísca e o
estouro ocorre e cidades podem ser destruídas. Quer você ser essa
faísca? Ou quer você aprender a controlar o que existe dentro de você?
Podemos lhe dar isto. — Ele fitou Nyx de maneira condescendente.
—
Olimpianos nunca gostaram de submeter-se uns aos outros. Eles estão
acordando. Eles vão buscar o poder e tentar destruir uns aos outros. Nós
não somos assassinos, Susan — Nyx sorriu docemente para ambos. — Só
queremos manter os nossos em segurança.
Assassinos, ela repetiu mentalmente como se a palavra tivesse algum tipo de poder.
Sua
mão tremia levemente enquanto tentava levar o último gole de seu chá a
boca, apesar de todos os seus esforços para se manter calma. Ela
repousou sua xícara de porcelana que pertencera a sua família por
gerações com cuidado na mesa e fitou Thanatos por um momento, reparando
os detalhes asiáticos de seu rosto pela primeira vez, enquanto ele caía
inconsciente com a cabeça sobre a mesa.
Após estar feito o feitiço, voltou a fitar Nyx.
—
Deveria eu acreditar em tais palavras enquanto este homem lidera uma
guilda de assassinos e você se vende para ter o apoio dele?
— A
morte é natural, Susan. Nem mesmo a força de seu irmão fez com que ele
pudesse escolher um receptáculo, cada um dos deuses teve um período
obscuro, não culpe Thanatos por estar presente no corpo de um humano
tão... Inusitado. — Nyx partiu em defesa do filho, sabia que a reputação
de Park não era das melhores.
— E ainda sim você vendeu seu corpo
a ele. — Susan só conseguia sentir nojo de tal ideia. Mesmo que o corpo
de Park não tivesse nenhuma ligação genética com Nyx, a ideia de uma
mãe se permitir ir para cama com o próprio filho lhe causava horror e
náuseas. — É assim que você ajuda os seus? — A tranquilidade que tentava manter em sua voz desaparecia pouco a pouco.
—
Quando isso acabar, você vai preferir a ajuda que tanto despreza. — Nyx
se levantou com calma, a raiva de Susan era só um dos indícios de sua
personalidade conflituosa. — Você não precisa decidir agora mas também
não demore muito. — Ela voltou a olhar para Thanatos. — Creio que é hora
de irmos, filho.
— Eu não posso fazer parte disso... Enquanto
Park for um assassino. Não quero machucar ninguém — seu tom de voz
diminuiu conforme pronunciou as últimas palavras até quase chegar a um
sussurro ao mesmo tempo em que uma das xícaras em cima da mesa explodia
em vários pedacinhos.
Thanatos se levantara, não entendendo o
porquê ele fora posto para dormir, porém compreendendo a situação em que
estava. Susan era uma idealista, uma princesa aos moldes mais clichês
da história, porém dona de um poder incrível, rivalizando com o dele.
Era muito melhor tê-la ao lado deles do que contra.
— Meu cartão. —
Retirou do bolso do paletó um de seus diversos contatos. — Quando você
precisar de alguma coisa da qual você precisa resolver de maneira não
convencionais me chame. Quer queira ou não, no atual momento, lhe darei
espaço e proteção. Ainda que seja de um assassino convicto e declarado.
Mas saiba, Susan, se não está conosco, está contra nós. Quem você será
no tabuleiro do jogo dos deuses? Uma torre que protege a humanidade ou
um cavalo que se move por todos os pontos sem uma direção definida?
Estou ansioso para descobrir.
Nyx ergueu uma das mãos e moveu os dedos em círculos enquanto cada pedaço da xícara voltava para sua posição original.
—
Nem tudo pode ser consertado tão facilmente. — Ela olhou nos olhos da
filha pela última vez antes de uma fenda negra abrir-se em frente a ela e
Thanatos, transportando-os para longe.
Ela olhou o cartão em sua mão. JI YOUNG, PARK. CEO DA ID CORPORATION.
Havia ainda um número de celular para contato e um recado escrito à
mão, o qual não deu muita atenção, no verso do cartão. Por um breve
momento, perguntou-se quando ele havia escrito o recado, mas afastou
logo o pensando de sua mente e guardou o cartão em um bolso qualquer de
seu jeans.
— Tem certeza de que deseja continuar? — Hécate apareceu em sua forma espectral a poucos metros de Susan.
—
O tempo está acabando — repetiu o que a deusa lhe dissera colocando o
guardanapo sobre a mesa. Ela, então, se levantou, pegou seu sobretudo
que estava pendurado em sua cadeira e o vestiu.
— Há outras maneiras de obter as respostas que procura.
Susan
caminhou em direção à floresta, passando pela ponte de madeira. O sol
nas suas costas terminava sua dança, lançando seus últimos raios pelo
céu estrelado.
— A destruição se aproxima — foi tudo o que
respondeu. Ela sabia que a outra entendia o que isto significava, Hécate
vira a destruição tanto quanto Susan.
— Susan Blair, este é meu
último aviso. O que está prestes a fazer é perigoso e o resultado é
imprevisível, poderá inclusive te levar a morte, e eu nada poderei fazer
para te ajudar. Estará sozinha se prosseguir.
Olhou nos olhos da mulher, a um passo de entrar na floresta, e respondeu:
— Eu sei. Obrigada, Hécate. — E entrou, seguindo para o local que preparara para o feitiço.
Susan
se viu diante de um telão, como os usados em salas de cinema, todo
negro e estrelado. Ela olhou a sua volta, pouco certa do que estava
acontecendo. Mas nada mais parecia importante, pois nada mais existia
naquela sala, nem mesmo paredes ou chão e teto. Era apenas ela e as
infinitas estrelas estampadas a sua frente.
Foco, foi
tudo o que ouviu reverberar por todo o vazio. Reconheceu, um pouco
espantosa, a voz de sua deusa ecoar pelas paredes daquele vazio,
percebendo, quase de imediato, que aquele lugar se tratava de sua
própria mente.
Ela seguiu o conselho de Hécate e focou-se no que
era importante, o que estava a sua frente. Um telão, um tapete ou um
quadro, era difícil dizer o que via quando só conseguia identificar as
estrelas. Por um momento pensou estar olhando o próprio universo de fora
dele, como se todo o universo estivesse estendido em um único plano
diante dela e ela pudesse observar e tocar qualquer ponto.
Tocar, pensou e seu braço se mexeu apenas com o simples pensamento.
Seus
dedos atravessaram o plano, como se tudo o que visse fosse um
holograma, e a imagem mudou.
Não estava mais observando o espaço, mas
agora via uma constelação.
— A constelação do corvo — sua boca murmurou o que sua mente pensara, assustando-a mais uma vez.
O
quadro mudou mais uma vez, dessa vez mais rápido do que conseguia
assimilar. Teve a impressão de ter visto um redemoinho se formando no
meio da constelação antes de ser tragada por uma força gigantesca. Lutou
para sair daquele lugar que rodava e não a deixava respirar. Tudo em
vão.
Quando abriu os olhos, estava em pé em alguma rua
desconhecida. Viu a silhueta de uma pessoa, não muito longe, andando em
sua direção. Um desespero a assolou ao perceber que sua visão era nada
mais que um borrão indistinto. Mas era tarde para reagir, seu corpo já
havia começado sua queda até o chão.
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Escrito por Camille M. P. Machado, Julia Hornick e Vini Ribeiro