─ Susan, querida – ela ouviu alguém chamá-la em tom de preocupação.
─
Vovó... – a jovem apertou os olhos tentando enxergar as feições de sua
avó, sua visão ainda estava um pouco enevoada. – Onde estou?
─ Você nos deixou muito preocupada, Susan – disse Eleonor se aproximando.
─ Você está no hospital, querida – respondeu Mary.
─
Hospital? – ela olhou, atordoada, ao seu redor. Estava deitada em uma
cama de hospital em um quarto particular. Havia um acesso preso em seu
braço e uma grande bolsa de soro pendurada. – O que aconteceu?
─ Ah, querida... – Mary a olhava com pesar.
─ Descanse, Susan, depois conversamos sobre isso.
─ Ela precisa saber o que aconteceu, o que você deixou acontecer.
─ Não, é melhor deixá-la descansar mais um pouco. A coitada está atordoada, será que não consegue ver, Mary?
Susan
assistiu a Mary e Eleonor voltarem a brigar sem interesse, o mesmo nome
ecoava em sua cabeça sem parar. O que queria dizer isso? Será que
estava ficando louca e ouvindo coisas? Não, ela não se sentia louca,
sentia-se completamente sã. Então o que era aquela voz?
─ Então
você já acordou – disse o médico ao entrar o quarto, acordando-a de seu
devaneio -, esperava que conseguisse dormir por mais alguns dias.
─ Mais alguns dias? Há quanto tempo estou dormindo?
─
Vamos ver – ele caminhou até a base da cama de Susan e releu seu
prontuário. – Ah, sim, claro. Você está dormindo há três dias.
─ Três dias? – ela suspirou.
─ Seu corpo estava exausto devido a seus problemas com o sono, por isso dormiu por alguns dias. Mas agora, como se sente?
─ Me sinto bem, sinto como se um peso houvesse desaparecido.
─
Isso é um ótimo sinal, sua recuperação está indo bem. Porém anda
teremos que fazer alguns exames, você deveria se considerar sortuda,
mocinha, por não ter sido atacada por aquele lobo também.
─ Lobo... – repetiu lembrando-se do animal fantasma e o ataque a Roger – O que aconteceu com Roger?
─
Não sei dos detalhes, você terá que perguntar a Mary e Eleonor.
Voltarei mais tarde quando seus exames ficarem prontos, aproveite o
tempo e tente descansar um pouco mais.
Susan anuiu e o observou
sair pela porta. Em seguida, ela olhou para sua avó e antiga babá, as
duas haviam parado de brigar, mas não pareciam muito felizes com a
presença uma da outra.
─ O que aconteceu ao Roger? – indagou na esperança de que não voltassem a brigar.
─ Aquele seu amigo? Ele foi desfigurado por aquele animal selvagem – respondeu Mary de ímpeto.
─ Mary! Ela precisa descansar, não precisa dessas lembranças agora.
─ Ela tem que saber que o amigo dela morreu e que ela vai precisar depor novamente.
Ela
suspirou e ignorou mais uma discussão das duas. Virou a cabeça para o
outro lado e fitou a janela enquanto deixava as memórias lhe voltarem,
uma a uma.
Roger havia invadido sua casa e a ameaçara quando fora
atacado pelo lobo. Contudo, o animal nunca tivera a intenção de
machucá-la, ela percebeu isso quando o olhou em seus olhos, era como se
ele tentasse protegê-la do surto de Roger. Mas por quê?
─ O mesmo lobo do acidente dos meus pais – murmurou tão baixinho que apenas ela escutou.
Ideias
estranhas surgiram em sua cabeça e mais uma vez aquele mesmo nome
ecoou, como se uma voz bem fundo o repetisse incontáveis vezes e ele
ecoasse pelas paredes de sua mente.
Este nome deve ser a chave para todas essas coisas estranhas,
pensou ela ao mesmo tempo em que sentia um objeto sólido e frio
aparecer em sua mão. Ela o olhou e novamente o estranho punhal estava
com ela, segurava-o com força. O metal gelado parecia congelar seus
dedos, mas ela não se importou, ergueu o braço para que pudesse olhá-lo
com mais atenção. As estranhas runas ainda a hipnotizavam e pareciam
levar sua mente para outro lugar.
─ Susan, o que foi? – interrompeu Eleonor – Por que está com o braço levantado?
Ela a fitou ainda em transe.
─ Você não o vê? – perguntou após longos minutos em silêncio.
─ Ver o quê? Do que está falando? Você está nos deixando preocupadas.
─ Não há nada para se ver, Susan – respondeu Mary.
Ela
olhou mais uma vez para sua mão erguida no ar e se deu conta de que
segurava apenas o vazio. Seu braço estava erguido e sua mão parecia
segurar algo, mas não havia nada ali, a lâmina desaparecera tão
misteriosamente como sempre apareceu.
─ Ah... Deixa para lá.
Susan
baixou o braço e voltou a observar as nuvens pela janela, constrangida
pela situação. Era incrível como só ela conseguia ver aquele objeto e em
como ele aparecia e desaparecia. O que aquilo significava?
O dia
prosseguiu rapidamente, Susan entrou e saiu de várias salas de exames
durante toda a tarde e, no início da noite, recebeu alta do médico. Por
todas aquelas horas que passaram desde que acordou, ela ficou pensando
naquele único nome no qual não saía de jeito algum de sua cabeça.
Ao chegar à casa, ela comeu e tomou um banho rápido, trancando-se em seu quarto em seguida. Com o notebook em cima da cama, Susan perdeu-se no tempo pesquisando tudo referente àquele nome.
A
hora passou sem que percebesse, entrando madrugada adentro. Somente
quando seu computador desligou por falta de bateria é que ela notou o
passar da hora, porém não sentia sono e não queria dormir. Sentia a
necessidade de saber mais e mais, então se levantou e caminhou até sua
sala de estar particular para pegar o carregador.
Contudo, um
estalo vindo de seu banheiro a fez parar e virar-se. A dobradiça rangeu
enquanto a porta se abria devagar e revelava um cômodo escuro e frio,
convidando-a para entrar. Como em um transe hipnótico, ela aceitou o
convite e caminhou vagarosamente até o limiar da porta, onde parou e
fitou a escuridão.
Entre, ela escutou. A voz era fria e
afiada como uma lâmina, mas havia certa ternura naquele tom que parecia
estar dentro de sua cabeça. Era a mesma voz feminina que ouvira alguns
dias antes.
Susan obedeceu e deu um passo à frente adentrando a
escuridão, sua mente divagava enquanto seu corpo parecia responder
sozinho àquele chamado. A porta bateu atrás de si, despertando-a do
transe. Ela se virou de sobressalto e fitou o breu na direção da única
saída do recinto, agora fechada.
As luzes se acenderam como em um
passe de mágica, apavorando-a. Ela correu para a porta e tentou abri-la,
porém a chave desaparecera e a maçaneta parecia apenas enfeite, não
importava quantas vezes tentasse girá-la e abrir, não adiantava. Chutou e
bateu na porta na esperança de alguém ouvir.
Susan... Aqui...
A
voz em sua cabeça lhe chamou novamente, fazendo seu coração disparar.
Ela se virou devagar, assustada e suando frio, mas nada havia atrás
dela. Seu banheiro parecia idêntico ao que sempre era e não havia sinal
de que alguém estava ali.
Assim você vai assustá-la,
disse outra voz estranhamente familiar. Esta era mais doce e
tranquilizadora, mas não menos assustadora. A ideia de não ter mais
ninguém ali dentro e ainda conseguir ouvir vozes tão próximas era por si
só apavorante.
─ Quem está ai? – quis Susan saber, sua voz tremia com o pânico.
A primeira bufou. Calada.
Você é quem nos colocou nesta situação, disse a segunda.
Aproxime-se, Susan,
voltou a dizer a primeira voz. Sem que percebesse, a jovem obedeceu e
caminhou até o centro do banheiro, seu corpo se mexia sozinho como se
alguém o controlasse. O pânico também diminuiu, seu coração se aquietou e
ela não mais suava frio.
Olhou para o espelho e viu seu reflexo
parado, fitando-a. Ele sorriu mesmo que ela não estivesse sorrindo,
revelando-lhe a misteriosa adaga em uma das mãos. No mesmo instante,
olhou para sua própria mão e percebeu que a lâmina era segurada apenas
por seu reflexo.
Aquele olhar frio sobre ela a impeliu a dar mais
alguns passos para frente, em direção ao espelho, esticou o braço e o
tocou. Então tudo aconteceu muito rápido, as paredes do banheiro se
desfizeram e todos os objetos desapareceram, a paisagem mudou e em
alguns segundos não estava mais em seu banheiro, mas em sua clareira
favorita, onde treinava.
Recuperando o controle sobre seu corpo, Susan deu um passo para trás, assustada, tropeçou em uma pedra e caiu no chão.
─ Parabéns. Você a trouxe, mas ela continua assustada – observou a estranha voz familiar.
─ Quem está ai? – perguntou Susan tentando parecer confiante enquanto se levantava do chão.
Ninguém respondeu. A floresta estava, provavelmente, dormindo sob o céu estrelado e ausente de lua.
─ Olá? – perguntou novamente observando ao redor. Sua voz ecoou por toda a mata assustando alguns pássaros.
Um
lobo surgiu dentre as árvores e a fitou. Ela o observou e reconheceu os
intrigantes contornos irregulares, era o mesmo animal que ela sempre
via.
─ Você... Espere – gritou e correu atrás do animal em fuga.
Embrenhou-se
na floresta em perseguição ao lobo. Correu o máximo que conseguiu, e
surpreendeu-se ao perceber o quão rápido podia correr, sentia-se como se
tivesse nascido para aquilo. A brisa úmida e gelada açoitava seu rosto e
esvoaçava seus cabelos enquanto perseguia uma presa, uma sensação na
qual lhe era tão familiar que por um breve momento pareceu que por toda
sua vida fizera aquilo.
Por longos minutos ela correu, desviou dos
obstáculos com facilidade em seu caminho e seguiu um fantasma. Viu a
paisagem mudar ao seu redor, pinheiros dando espaço a enormes ciprestes;
e as estrelas desaparecer no céu noturno. A escuridão se tornava cada
vez mais intensa, obrigando-a a aguçar sua audição e olhar com atenção a
cada contorno que via a sua frente.
A criatura parou e, para sua
felicidade, ela parou também. Estava a alguns metros de distância,
arfava com as mãos apoiadas em seus joelhos. Àquela altura, respirar era
difícil e dolorido e enxergar era quase impossível, tudo o que via era a
silhueta reluzente do animal a sua frente.
Ela deu um passo para frente com as mãos esticadas e disse:
─ Eu me lembro de você... Naquele dia... Naquele dia você me salvou, não foi? Atacou e matou aquele homem para me salvar, não é?
O
lobo não respondeu. Também como poderia? Apesar do fato de ser um
fantasma, era apenas um animal que só poderia rosnar ou uivar. Ao invés
disso, ele a encarou, nos olhos, e mesmo com toda aquela escuridão, ela
sentia o peso daquele olhar.
Ele se virou e voltou a correr.
─ Só posso estar ficando louca mesmo, estou falando com um lobo – suspirou.
Susan
caminhou na direção em que o animal fora e parou no limiar da floresta.
Estava diante de uma enorme clareira, um pouco mais iluminada que todo o
resto daquele lugar.
Ela respirou fundo e caminhou colina abaixo,
em direção ao centro onde se encontrava uma enorme estátua e algumas
tochas, fonte de toda aquela iluminação. O lobo a levara até ali e,
então, desaparecera.
Aquela clareira era intrigante e, ao mesmo
tempo, tenebrosa. A estranha estátua de pedra lhe atraia de forma
inexplicável, sabia que ali teria as respostas para suas perguntas, um
sentimento que o lobo a transmitira pelo olhar. Por outro lado, a
escuridão da noite e o farfalhar das árvores eram amedrontadores,
pequenos vultos com enormes olhos a observavam das sombras.
Aproximou-se
e percebeu, para sua surpresa, que a conhecia. Era uma escultura um
pouco maior que ela feita de mármore negro, uma mulher em forma tripla
onde uma segurava uma espécie de chave, a outra um estranho objeto que
Susan não reconhecera e a terceira segurava um punhal de mármore
idêntico ao que ela sempre via. Havia duas tochas de pedra em duas
outras mãos, estas ardiam como duas tochas comuns, feitas de madeira.
As
três mulheres de escultura carregavam em seus pescoços um delicado
colar, cujo pingente era um crescente lunar. Outros adornos em forma de
serpente enfeitavam os pulsos e as testas da estátua.
Toda aquela
atmosfera mítica a conduziu a um novo transe. As árvores ao seu redor se
agitaram enquanto perguntas e mais perguntas surgiam em sua mente,
deixando-a tonta. Instintivamente, apoiou-se na estátua. Uma onda de
calor e tranquilidade inundou seu corpo e alma e despertou antigas
memórias que há muito foram esquecidas.
Sua cabeça rodou, perdeu o
equilíbrio e caiu sentada no chão. Por um momento, ela se viu em
lugares que nunca esteve, fazendo coisas que nunca fez. Mas o mais
estranho de tudo isso era que em nenhuma daquelas memórias parecia ser
ela. Sentia como se fossem suas, via como se os olhos fossem seus,
porém, ao olhar para si mesma, não se reconhecia.
Susan fitou suas
mãos, depois a escuridão da floresta a sua frente. Um nó se formou em
sua cabeça junto com centenas de outras perguntas, de modo que foi
preciso muito esforço para discernir o que via e ouvia ao seu redor.
Milhares
de enormes olhos amarelos cintilavam no manto negro que pairava sob o
bosque e a olhavam com curiosidade. Brumas surgiram como mágica e
recobriram todo o chão de terra à medida que a temperatura caía e o
gélido ar a golpeava com força. O frio adormecia seus pensamentos e
enlerdava seus sentidos, acalmando as estranhas memórias que surgiam em
sua cabeça.
Ela se levantou, tremendo, e, com o canto do olho,
perseguiu um vulto pela mata até perdê-lo de vista. Ouviu passos de
algum lugar próximo e vozes indistintas, animais corriam ao longe e
galhos eram mexidos.
─ Quem está ai? – perguntou assustada antes de ver um novo vulto correndo pelo bosque.
Perseguiu-o
com os olhos novamente, desta vez esforçou-se para não perdê-lo.
Virou-se, mas nada encontrou, nem mesmo uma silhueta, apenas os
estranhos olhos cintilantes observando, espreitando.
Os olhos
desapareceram nas sombras e uivos ecoaram por toda parte. Muitos lobos
uivavam, todos ao mesmo tempo, enquanto uma figura feminina, acompanhada
de um enorme lobo, saía dentre as árvores. Susan a observou, um arrepio
subiu por sua espinha conforme as feições da mulher se tornavam mais
claras.
A mulher a sua frente era um pouco mais alta do que ela,
jovem e assustadoramente bela. Seus olhos eram de um negro profundo e
inspiravam o mais puro terror. A pele branquíssima contrastava com o
negro dos cabelos e olhos, sob alguns ângulos parecia até um pouco
pálida. Contudo, o que mais lhe assustava era a incrível semelhança com a
estátua, cujos traços do rosto e corpo eram idênticos. Ela também
vestia uma túnica grega e as mesmas joias que a escultura.
Susan recuou alguns passos. Seu corpo tremia, mas não mais de frio, ela tremia de medo.
─ Quem é você? – indagou com a voz trêmula.
Ela olhou mais uma vez para a estátua quando esta se desfez em uma luz negra. Em seguida, voltou a fitar a estranha senhora.
─ Quem sou eu? – perguntou-se.
Outra figura feminina saiu dentre as árvores e se aproximou de Susan, porém, permaneceu na penumbra, ocultando seu rosto.
─ Quem é você, Susan?
─ Como sabe meu nome? – ela deu um passo para trás, tentando esconder o tremor em suas pernas. – E que lugar é este?
Ela
observou com mais atenção ao seu redor e percebeu que aquele recinto
não parecia com nada que ela já tivesse visto, mas sua atmosfera pesada e
sombria era estranhamente familiar. As trevas engoliam as luzes de tal
forma que causavam calafrios em Susan.
Todavia, mesmo com toda
aquela escuridão, ela conseguiu notar um leve sorriso estampado no rosto
da segunda figura feminina, que, a julgar pela altura, não parecia ser
mais do que uma jovem menina ainda na pré-adolescência.
─ Este lugar não tem importância neste momento...
─
Como vim parar aqui? – interrompeu sem prestar muita atenção no que
dizia. – Eu me lembro de estar em meu banheiro e, quando pisquei meus
olhos, estava aqui, nesta floresta.
Um ruído na floresta chamou a
atenção de seus olhos, ela avistou novamente o vulto que perseguira
minutos antes. Ele saiu do bosque e se aproximou das duas mulheres como
uma sombra indistinta, e lá permaneceu, ao lado delas. Elas não reagiram
àquela aproximação, talvez por não notarem a sombra, ou talvez por não
ligarem para ela. Independente disso, a única coisa que conseguiu
identificar era que aquela forma assemelhava-se a de um humano.
─ O
tempo está acabando – alertou, ignorando a última pergunta de Susan. –
Você precisa parar de lutar contra suas memórias e se lembrar.
─ Me lembrar de quê?
Um
novo nó se formou em sua cabeça. Por um momento, novas lembranças
surgiram, desnorteando-a. Sua cabeça latejou com força de maneira que
foi obrigada a se abaixar e ficar de joelhos na terra gelada para não
cair. As brumas a envolveram em um abraço gelado, congelando cada parte
de seu corpo.
─ Pare – pediu entre vários gritos de dor. – Faça parar, por favor.
─
Você continua lutando contra suas memórias – observou com frieza. –
Deixe-as virem, esta é a única forma de acabar com todo este tormento.
─ Tão... fácil... dizer.
A
dor lancinante e o frio intenso tornaram impossível aguentar o peso de
seu próprio corpo. Ela deixou-o cair no chão e se contorceu de dor, aos
gritos. Todas aquelas memórias surgiam de uma única vez e dominavam
completamente sua mente. Sentia como se todos seus neurônios estivessem
entrando em combustão tentando processar todas aquelas imagens.
─
Eu disse que seu plano não iria funcionar – pronunciou-se a menina pela
primeira vez. Ela agarrou o braço da mais velha com força e voltou a
dizer em tom de repreensão. – Se continuar, irá matá-la. O corpo humano
dela não aguentará as memórias de todas nós.
A mais velha fitou a
mais nova com desdém, e depois o vulto ao seu lado. Diferente da jovem
herdeira Blair, ela não parecia ter dificuldades para enxergar o vulto
com clareza, em sua forma natural. Trocaram demorados olhares.
─ Está bem – cedeu.
Susan
sentiu sua mente se acalmar novamente, as lembranças que não
reconheciam pararam de surgir e sua dor de cabeça diminuíra aos poucos
até desaparecer completamente. As brumas lentamente desapareceram e o ar
esquentou a uma temperatura agradável. Ela ainda ofegava, por isso
permaneceu deitada fitando o céu, que, apesar de negro, tinha sua
beleza.
─ Não sei que tipo de mágica foi essa, mas obrigada – agradeceu aliviada.
─
Não se iluda, criança – advertiu a mulher em tom ríspido –, uma hora
essas lembranças voltarão e você terá que se lembrar de quem realmente
é. Eu as adiei por um momento, mas elas voltarão, esteja preparada.
Viemos apenas te dar um aviso, o tempo está acabando.
Susan se
levantou e viu, para uma das suas maiores surpresas naquele dia
instigante, que as duas misteriosas mulheres estavam desaparecendo. Seus
corpos se tornavam translúcidos progressivamente permitindo que ela
visse o que estava atrás delas, o vulto também se tornava cada vez mais
transparente.
─ Esperem! Eu não entendo... O que querem que eu
lembre? Eu me lembro de toda a minha infância e adolescência, sei quem
eu sou. Me chamo Susan Blair e sou a única herdeira de todo o patrimônio
da família Blair. E como assim o tempo está acabando? Que tempo está
acabando? Para quê?
─ Susan Blair é apenas o seu nome mundano –
respondeu a menina. Àquela altura, seu corpo já estava quase
completamente transparente, apenas um fraco reflexo permanecia visível. –
Há muitas coisas acontecendo neste momento, coisas maiores do que você
imagina. Para sobreviver neste mundo que está prestes a mergulhar no
caos novamente, você precisará de nós, precisará voltar a ser quem era
no passado. Adeus, Susan.
─ Espere...
Ela deu um passo à
frente na tentativa de impedi-la, mas já era tarde demais. Com um
sorriso no rosto, a menina desapareceu deixando apenas um vazio onde
estivera e uma sensação de que já a conhecia.
─ Nomeie-me e terá
acesso ao meu poder; aceite-me e ele será seu – disse a senhora,
deixando Susan ainda mais confusa. – Agora está na hora de acordar.
A
mulher, em sua longa túnica grega, também desapareceu junto com o
vulto, deixando-a sozinha novamente naquela clareira escura sob o céu
apagado da noite com o lobo fantasma e os estranhos olhos do bosque.
O
lobo a encarou por alguns minutos e depois rosnou. Ela recuou
lentamente alguns metros enquanto outros lobos, também fantasmas, se
aproximaram dela rosnando. Olhou rapidamente ao redor e percebeu que
estava completamente cercada por uma enorme matilha fantasma, para seu
desespero.
─ Esta noite está ficando cada vez melhor – ironizou alto.
Ela
continuou andando devagar para trás, afastando-se o máximo que
conseguia dos lobos, o que não era uma coisa muito fácil, visto que
estava rodeada de criaturas ferozes e nada contentes. Eles, por sua vez,
fechavam o cerco ao redor dela enquanto rosnavam.
─ Susan,
querida, você encontrará as respostas que procura em suas memórias
latentes – uma doce e, até então, desconhecida voz feminina lhe disse.
Parecia vir do céu negro.
Em seguida, tudo aconteceu muito rápido.
Ela assistiu a todos os lobos pararem de rosnar e a correr para cima
dela para atacarem, assistiu a eles pularem em cima dela impotente. No
momento seguinte, ela estava novamente em sua casa, deitada em sua cama.
Seu notebook estava aberto ao seu lado e sem bateria, não havia sinal
do carregador por perto.
Levantou correndo e um pouco confusa,
checou todo seu corpo atrás de possíveis mordidas. Suspirou e relaxou
quando constatou que não nada havia e que estava inteira.
─ Um sonho? – perguntou-se alto.
Uma frase ecoou em sua cabeça – Nomeie-me e terá acesso ao meu poder; aceite-me e ele será seu – e, no mesmo instante, o reflexo da misteriosa mulher apareceu no espelho de sua penteadeira.
─
Hécate – proferiu em voz alta, reconhecendo-a e a estátua em forma
tripla que vira em seus sonhos, um dos símbolos da deusa grega.
Capítulo escrito por Camille M. P. Machado
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