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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Capítulo 02: Alice

Quando acordara, Alice se viu no meio de uma misteriosa floresta, estivera deitada no chão, inconsciente, por algum tempo impreciso. A floresta era vasta e um pouco densa, havia apenas árvores enormes e outros tipos de vegetais até onde seus olhos pudessem ver, o que não era muito, pois as copas das árvores mais altas impediam que a luz solar chegasse ao solo com frequência.

Ao seu lado direito havia apenas um pequeno córrego com água cristalina; ao seu lado esquerdo, via-se apenas o verde das folhas, o marrom dos grossos troncos de árvores e um tom envelhecido de amarelo das folhas caídas que perderam seu pigmento esverdeado. Ela reconhecia algumas das espécies de árvores, como o caucho, que outrora pertencera à vegetação de seu mundo, a Terra, e há muito foram extintas pelo homem e sua ambição. Porém, não reconhecia a maioria das árvores, algumas produziam frutos com fosforescência.

Alice caminhou em direção à floresta, olhava para todos os lados, desnorteada, não havia mais matas em seu mundo, os únicos vegetais de terra firme existentes eram as plantações de grandes fazendeiros e o de centros de pesquisas.

– O que diabos é isso? – perguntou-se, incrédula – Onde estou?

Sua voz soara mais alto do que pretendia, emitindo ecos mata adentro, a floresta parecia acordar à medida que sua voz se espalhava por ela. O lugar estava vivo de alguma forma, sentia isso, muito diferente da Terra, onde a fauna e flora pereceram.

Será que estava sonhando? Tudo parecia tão surreal e, ao mesmo tempo, real. Alice não sabia dizer se, de alguma forma, adormecera enquanto mexia em seu computador ou se aquilo que seus olhos viam era realmente real. Se fosse real, como ela fora parar naquele estranho e selvagem lugar? E por que não se lembrava de nada após entrar eu seu computador?

Alguma coisa parecia ter ouvido seus pensamentos, pois a floresta respondera a eles. Uma ventania irrompeu tão forte que ela mal conseguia abrir os olhos, terra e folhas voavam em sua direção. Instintivamente, levou os braços à cabeça, a fim de proteger seus olhos, e projetou seu corpo para frente, para não cair de costas no chão ou ser levada pelo vento. Então, houve um clarão e a ventania parara tão rápido como começara.

Por um momento, ela sentira-se cega com tanta incidência de luz em seus olhos, lacrimejava toda vez que tentava abri-los. Levou algum tempo até conseguir se acostumar com a luz, mas quando conseguiu, viu um rosto feminino pairando a poucos metros de distância.

– Já consegue ver? – perguntou o rosto a Alice.

Alice acenou positivamente a cabeça, estava assustada demais para dizer qualquer coisa.

Aquele rosto era ainda mais estranho que o lugar onde estava, ele era apenas luz azul em forma do rosto de uma mulher, porém, era maior que uma cabeça normal e translúcido. A forma luminosa terminava na altura do pescoço da mulher. Poderia aquilo tudo ser realmente um sonho?

– Não, isto não é um sonho – respondeu a mulher como que lendo seus pensamentos – Você está em Mithra, bem vinda, Alice...

– Como sabe meu nome? E que lugar é esse? – interrompeu.

– Eu sei tudo o que se passa nesse mundo, minha criança. Este planeta se chama Mithra e, como pode ver, ainda é um lugar selvagem. Não existe humanos aqui, assim como não existem civilizações tão organizadas e estatais como em seu mundo, a Terra. Não tenha medo, com o tempo irá aprender a apreciar o ar úmido das florestas, o verde vívido das arvores, o barulho dos animais e todos os outros ruídos da natureza. É uma pena que na Terra o homem destruiu toda essa beleza natural para obter ainda mais dinheiro – havia tristeza em sua voz.

– Como sabe tudo isso: meu nome, de onde eu vim, como meu mundo é...?

– Eu sei de muitas coisas e é por isso que você está aqui. Você foi selecionada para participar desta pequena e divertida competição, se ganhar, terá direito a realização de qualquer sonho seu, até aquele mais impossível de todos. Tudo o que precisa fazer é chegar primeiro à minha residência, a Biblioteca Mágica localizada na torre mais alta do planeta. Você poderá vê-la em qualquer ponto do mundo, desde que consiga ver o céu. Pegue isto, é um mapa mágico, ele te dirá onde você está com um ponto vermelho e a biblioteca no ponto azul e há outras funcionalidades na qual deverá descobrir sozinha.

Alice levantara a mão para pegar o objeto que aparecera no ar, era uma fina pulseira feita com um material na qual ela não sabia identificar. A medida era perfeita para seu pulso.

– Você tem direito de escolher três habilidades especiais para competir, pode ser habilidades físicas, intelectuais, genéticas ou mesmo mágicas. Quais deseja ter?

Alice pensou em quais habilidades escolher com cuidado, levou algum tempo até se decidir. Por fim, escolhera aquelas que ela mais gostava nos desenhos, filmes e séries de seu mundo e algo que poderia ser útil.

Muito bem, agora às regras. A competição é simples e suas regras igualmente:
1. Haverá momentos em que precisará lutar com outros competidores para decidir quem continuará no jogo.
2. O ganhador das batalhas entre competidores permanecerá na competição e o perdedor voltará ao seu mundo de origem.
3. Por mais cruel ou sangrenta possa ser uma batalha, não haverá mortes, todos aqueles que supostamente morrerem, regressarão imediatamente ao seu mundo. Entretanto, ainda sentirão as dores físicas de uma batalha feroz.
4. Ninguém começará dominando suas habilidades, será preciso bastante treino. Para isso, você pode se aventurar nas inúmeras aventuras que existem por ai, mas tenha cuidado, uma vez que seja derrotada pelas criaturas do próprio mundo, você também voltará ao seu mundo.
5. Há centenas de artefatos mágicos que podem te ajudar durante a competição, seja melhorando suas habilidades ou te dando novas. Você poderá consegui-los através de aventuras e exploração ou derrotando outros competidores que tenha algum artefato.
Acho que isso é só, alguma dúvida?

– Como vejo o mapa nesse troço?

– Apenas aperte a pedra vermelha em seu centro. O mapa irá se projetar da pulseira até um tamanho visível.

Alice apertou a pedra para testar o apetrecho. Um mapa projetou-se como a mulher dissera, ele mostrava toda Mithra, as suas florestas, desertos, quedas d’águas, cada pedaço do planeta.

– Isto parece uma...

– Superfície plana – completou a mulher – Mithra não é um mundo esférico como a Terra, é apenas uma grande superfície plana.

– E o que há depois dos extremos? – perguntou incrédula. A ideia de ser uma superfície plana era estranha demais para acreditar.

– Veja você mesma – respondeu sorrindo – Agora se divirta, criança, e pense no seu desejo com sabedoria, você tem até o fim da competição para pensar.

Então, a forma luminosa de um rosto feminino desaparecera instantaneamente, deixando Alice sozinha na silenciosa floresta. Ela estava perdida, com sede e com fome, seu estômago lhe implorava por comida, mas não sabia o que era comestível e o que poderia ser venenoso. Também não sabia para onde ir, o que fazer ou mesmo como utilizar suas habilidades.

Havia um córrego com água cristalina a poucos metros ao sul, deveria ser suficiente para saciar sua sede e enganar a fome até encontrar algo que possa comer. Ela caminhou até o córrego enquanto examinava a pulseira que recebera.

A primeira vista era apenas uma pulseira prateada simples com uma pedra vermelha em seu centro, porém, havia várias superfícies clicáveis, algumas tão pequenas que seria preciso usar a unha para acioná-las. Deveria ser as tais funções da pulseira na qual ela deveria descobrir sozinha, pensou Alice. Iria ver para o que serviam após saciar sua sede, ela já chegara ao córrego.

Alice se ajoelhou na margem do córrego. A água estava calma, conseguia ver seu reflexo com perfeição. Seus cabelos castanhos claros estavam uma bagunça, folhas de árvores estavam presas entre algumas madeixas; a pele clara de sua testa e de seu queixo estava levemente acobreada, suja de terra, criando um grande contraste com o resto do rosto.

– Ótimo, estou imunda.

Alice se aproximou, esticou os braços e pegou um pouco de água com as mãos. Bebeu a água de pouco em pouco até saciar sua sede, então começou a retirar as folhas de seu cabelo, usando a superfície de água como um espelho.

Após retirar todas as folhas, usou a água para limpar a terra de seu rosto, devolvendo à sua pele o tom claro que sempre tivera. A água gelada lhe dava sensações agradáveis, ela sempre gostou de temperaturas baixas e do frio atmosférico. Sentia conforto no frio e náuseas no calor.

Ela queria banhar-se naquelas águas e limpar a sujeira trazida pelo vento, mas o leito do córrego era raso demais para um banho. O seu centro, que era a parte mais profunda, não chegava aos seus joelhos, e ela não tinha mais do que 1,65 metros de altura.

Alice estava perdida no alívio que era aquela água gelada, mas um ruído surdo a interrompera. Sentia um leve tremor no chão, quase imperceptível se não fosse pela vibração causada na água. Seus ouvidos se atentaram ao ruído que se aproximava, o tremor era cada vez maior e o ruído mais alto. Ouvi-o por alguns minutos, então parou, para sua momentânea alegria.

Ela ainda estava ajoelhada à margem do córrego quando ouviu um rugido a poucos metros atrás dela. Virou a cabeça para trás, de vagar, para ver o que era, os olhos verdes arregalados e fixos na criatura, seu coração palpitando de forma anormal, ardendo em seu peito. Talvez não estivesse completamente curada de seu problema cardíaco, mas aquela não era uma boa hora para descobrir isso.

Era um animal atrás dela, parecia um rinoceronte, porém mais alto. Deveria ter uma altura de três vezes o tamanho dela, a pele era cinza e não havia um chifre perto de seu nariz, no lugar, havia uma espécie de placa ou lâmina extremamente afiada, capaz de cortar até uma folha enquanto estava em sua queda. O animal rugiu ao vê-la, agitando sua longa e fina cauda atrás de seu enorme corpo e revelando uma série de dentes afiados, diferente de dentes comuns de herbívoros, que são chatos.

– Um rinoceronte carnívoro, era só o que me faltava! – resmungou enquanto começava a correr o mais rápido que podia. Nos primeiros passos, apoiou as mãos no chão para manter o equilíbrio enquanto tentava correr e se levantar ao mesmo tempo. O animal correu atrás dela, fitando-a com seus olhos de predador.

As pernas estavam pesadas, a respiração estava difícil de manter e o coração ardia demais em seu peito, mas continuou correndo, o mais rápido que podia, com toda força que dispunha. Contudo, não era suficiente, o animal estava se aproximando demais, mais um pouco estaria próximo o bastante para o ataque.

Ver as árvores lhe deu uma ideia, isto a daria apenas algum tempo a mais para fugir e não tinha certeza se iria funcionar, mas era a única que tinha. Ela correu a uma velocidade menor, permitindo que se aproximasse, mas ainda mantendo alguma distância. Deixou que o animal a encurralasse, a sua frente havia uma árvore com espesso tronco, deveria ser o suficiente para prender o animal por alguns minutos.

Apesar de um pouco diferente, ainda tinha algumas características de rinoceronte, o animal esfregou uma das patas no chão quando percebeu que ela estava encurralada, embora ainda corresse. Os olhos do animal transbordavam de fúria, e com esta fúria, ele correu para cima dela, a placa afiada de couraça a uma altura que fosse fatal.

Quando se aproximou o bastante, Alice rolou para o lado, esquivando-se do ataque. A couraça afiada ficara presa na árvore, como ela planejara. Então ela se levantou e continuou correndo na direção que o animal não poderia vê-la e saber para onde vai enquanto ela continuava preso na árvore, tentando se soltar com fúria.

Alice correu o máximo que conseguiu, o máximo que podia forçar a continuar correr. A cada segundo passado, mais suas pernas estavam pesadas, a respiração difícil, o coração ardendo e a visão enevoando, mas ela continuou forçando, mas agora caminhando. Não podia deixar que o animal a encontrasse, seria o fim dela, mesmo que não morresse naquele mundo, ainda seria doloroso ser comida de uma espécie de rinoceronte predador.

Seu coração era fraco, os médicos de seu mundo a advertiram quando nascera. Os sintomas haviam desaparecido enquanto crescera, mas vez ou outra eles voltavam e ela se sentia tão fraca como seu coração, até que sua visão escurecia completamente e ela desmaiava. Quando acordava, sentia-se melhor, porém, ali não era lugar para desmaiar, poderia haver outros animais tão perigosos como aquele ou piores. A ideia era assustadora, a mantinha caminhando, mesmo com toda dificuldade que aquilo representava.

Ela caminhou por algum tempo, no inicio corria, depois foi diminuindo a velocidade até quase se arrastar. Então, um baque surdo de um corpo caindo no chão assustou alguns pássaros das copas das árvores. Eles voaram para bem longe, enquanto ela ficava caída no chão, inconsciente.


Quando acordou, viu-se em uma casa simples e pequena, as paredes eram feitas de grandes lascas de troncos de árvores e o piso de pedra lisa. Ela estava deitada numa pequena cama de palha em um canto da minúscula casa. Tentou se levantar, mas descobriu que ainda estava fraca demais e seus membros pesados.

– Você precisa ficar em repouso por mais tempo, criança humana. Seu coração não aguentará mais situações como a que te fez desmaiar, ele está bem debilitado.

Escutava uma voz feminina vinda do outro canto da casa, mas não conseguia ver quem era. O lugar estava escuro demais para enxergar algo com precisão, tudo o que podia identificar era a silhueta de uma mulher sentada em uma cadeira, não muito longe dela.

– Quem é você?

Não ouve resposta, ao invés disso, ouviu a mulher se levantar de sua cadeira e caminhar até algum lugar, ouviu mais alguns ruídos até uma lamparina iluminar o resto do lugar. A casa era simples e pequena, tinha apenas um cômodo, três camas de palha, algumas prateleiras e uma cadeira. No lugar da porta tinha uma cortina de pele e em uma das paredes uma janela, conseguia vislumbrar um tênue luar de uma lua minguante, mais uma noite e seria lua nova.

Quando a mulher se virou para Alice e voltou a sentar-se em sua cadeira, percebeu que a mulher era na verdade uma senhora e deveria ter algo próximo aos setenta anos de idade. Ela era um pouco mais baixa do que os humanos em seu mundo e havia pequenas protuberâncias em meio aos seus cabelos.

– Mewen, este é meu nome. Os caçadores a encontraram desmaiada na floresta e a trouxeram para cá. Você precisa descansar e comer alguma coisa, está dormindo há dois dias.

Mewen levantou-se novamente de sua confortável cadeira e foi até a porta.

Failari luthin ireth.

Ela gritava ordens para alguém do lado de fora, Alice conseguia perceber isso pelo tom de voz, mas não era capaz de entender uma única palavra, era uma língua estranha para ela.

A menina humana permaneceu sentada em sua cama por algum tempo, tentando ver o que acontecia do lado de fora, tentando entender para onde a levaram e o que iriam fazer com ela. As tentativas eram inúteis, ela sabia, não entendia a língua daquelas pessoas e não tinha forças para se levantar, porém, algo parecia hipnotizá-la de uma forma estranha. Sentia-se de alguma forma bem, estava cansada e com fome, mas algo dentro dela estava se recuperando.

A hipnose de Alice terminou quando Mewen lhe trouxe um pouco de guisado para ela comer. Ela achara delicioso, só não sabia se era porque realmente estava delicioso ou se era devido a sua grande fome. Comeu até não restar uma única gota no vaso de barro.

– Obrigada... Que lugar é esse? – por fim, Alice perguntou a Mewen quando terminou de comer.

– Uma pequena aldeia no meio da floresta, construída no interior de uma clareira. Agora descanse, pois amanhã será um dia longo, humana.

Alice obedecera à mulher e deitou-se em sua cama enquanto ela desaparecia na escuridão da noite, provavelmente estava voltando para sua cama. Sentia o corpo pesado e cansado no qual pedia algumas horas de sono, mas sua mente estava dispersa demais para dormir. Aquele lugar, as pessoas e até a própria língua ainda eram um mistério para ela.

Sua mente estava inquieta demais para dormir, havia tantas perguntas sobre onde supostamente estaria para nenhuma resposta. Ela ficou deitada, acordada, por um longo tempo, pensando sobre tudo o que lhe acontecera naquele dia. Contudo, após algum tempo, a inquietação de sua mente fora vencida pelo cansaço de seu corpo, que lhe suplicava para dormir.


A luz solar incidia intensamente sobre seus olhos quando acordou, quase ofuscando sua visão, fora preciso alguns minutos para se acostumar com a luz. O dia estava lindo lá fora, Alice percebera quando conseguiu enxergar as coisas. Ela levantou-se de sua cama e começou a andar pela casa, observando-a.

Com a luz do sol, ela conseguia ver melhor onde estava, coisa que a noite com uma simples vela era difícil. Ela estava em uma casa construída sobre uma grande árvore, a casa era maior do que pensara na noite anterior, era feita completamente de madeira, havia muitas camas de palhas no chão, prateleiras com lamparinas e ampolas com líquidos estranhos, cada um com uma cor e textura diferente. Após algum tempo observando, compreendeu que aquela casa deveria se tratar de uma espécie de enfermaria.

A enfermaria suportava até dez pacientes nos dez leitos espalhados pela casa e cerca de cinco curandeiros sem sofrerem problemas com o espaço apertado. As ampolas estavam em prateleiras pregadas no tronco da árvore, havia dezenas delas.

Alice estivera tão atenta à observação daquela misteriosa casa que a principio não percebera o barulho vindo do lado de fora. Ouvia o barulho de muitas pessoas falando ao mesmo tempo na estranha língua daquele lugar, de árvores sendo lenhadas e pedras sendo talhadas. Por algum momento, ela se perguntou como não tinha ouvido aquele barulho antes, estava alto demais para passar a despercebido.

Ela caminhou até a saída daquela casa para ver o que estava acontecendo do lado de fora. Ela afastou as cortinas de pele de algum animal com as mãos e se abaixou um pouco para atravessar a porta, pois esta era menor do que sua altura em uns dez centímetros. Havia uma sacada depois da porta, não era muito larga nem muito estreita, deveria permitir a passagem de três pessoas sem problemas algum. Ela parou na mureta de madeira da sacada, contemplando a beleza da construção da aldeia.

A aldeia fora construída em vários níveis ao redor de uma ampla clareira, eram muitas casas nas árvores. A enfermaria estava a, pelo menos, seis metros de altura, no terceiro nível da aldeia. Havia sete níveis no total, sendo seis com casas e o sétimo, postos de sentinelas no topo das árvores. O primeiro nível era o chão, e de lá partia os níveis seguintes sempre a uma distancia média de dois metros entre um e outro.

As escadas para subir ou descer um nível eram externas, ficavam entre as casas e no máximo duas pessoas poderiam usá-la por vez. Existiam quatro escadas no total, duas para descer o nível e duas para subir. Elas também marcavam os principais pontos cardiais: norte, sul, leste e oeste. Se uma escada para subir o nível se encontrava no norte, então a outra também para subir estava no sul, enquanto as de descida estavam no leste e no oeste. Desse modo, sempre haveria uma nova escada para continuar a subida ou a descida se andasse noventa graus para qualquer um dos lados.

O centro da aldeia era aberto e iluminado ao sol de meio dia, não havia construção alguma no chão, apenas uma grande fogueira, onde se reunia muitos aldeões. Outros estavam espalhados pelos níveis da aldeia desempenhando seus papeis na comunidade. Naquela aldeia, todos faziam alguma coisa, as crianças aprendiam e ajudavam os adultos em algumas tarefas, os adultos desempenhavam suas funções na comunidade e os mais velhos ensinavam as crianças. As tarefas eram variadas; caça, pesca, colheita, preparação da comida eram algumas delas.

Quando se deu conta, todos os aldeões estavam parados olhando para ela, encarando-a. A pressão daqueles olhares era grande, mas Alice não se intimidou. Ela procurou a mulher que lhe fora hospitaleira e se encaminhou até ela, observando a aldeia de vários ângulos e níveis diferentes. Achara incrível como um povo que não tinha qualquer conhecimento tecnológico conseguira construir uma aldeia como aquela, sustentada pelas árvores e de maneira a parecer que as árvores ao redor da clareira eram uma única coisa.

Mewen estava no primeiro nível, próximo a grande fogueira gritando ordens para aqueles a sua volta em sua língua quando Alice se aproximara. Ela era a única que parecia estar contente por ver Alice.

– Você se recupera rápido, humana. – gargalhou – Agora venha comigo.

Ela seguiu a mulher, tentando acompanhá-la, ela andava rápido para a idade que deveria ter. Os nativos observaram as duas irem embora calados e parados, ela sentia os olhares sobre ela de suas costas.

Elas adentraram a floresta, mas não foram muito distante da aldeia. Caminharam alguns metros mata adentro e pararam quando chegaram a um grande rio. O rio dividia aquela floresta em duas partes e era nele que desembocava todos os outros rios menores com olhos d’água no interior da floresta. As margens eram largas e o leito muito profundo, seria necessário uma grande embarcação para atravessá-lo.

Próximo à margem estava uma jovem colhendo algumas plantas que cresciam naquele lugar. Mewen gritou alguma coisa e ela se virou, então começou a caminhar na direção da mulher idosa e de Alice.

– Criança humana, esta é minha neta Lyria, ela te ajudará em sua estadia em nossa aldeia. Preciso voltar para a aldeia agora, deixarei as duas sozinhas por hora. - Mewen se afastara entrando na floresta novamente.

Lyria deveria ter a mesma idade que Alice, dezessete anos, porém, era mais baixa, deveria medir algo próximo a 1,4 metros. Era uma jovem energética e alegre, os cabelos eram ondulados e iam até sua cintura, a metade deles estavam presos atrás de sua cabeça com flores que Alice desconhecia. Seus olhos eram da mesma cor que a flor em seu cabelo, lilás, e a pele e a cor dos cabelos eram brancos como o luar.

– Então você é a humana que todos andam comentando desde a sua chegada. Estava curiosa para saber como era, mas minha avó não deixava ninguém se aproximar de você até se recuperar. Pensava que os humanos fossem mais altos, com o dobro da minha altura, e mais ferozes, mas você é apenas uma garota como eu e todas as outras da aldeia, só que um pouco mais alta. Qual seu nome, humana?

– Alice...

Lyria analisava-a de cima a baixo com uma cesta com ervas em uma das mãos e a outra na cintura, memorizando o nome e o rosto.

– Como minha avó lhe disse, chamo-me Lyria. Sou uma sacerdotisa, como minha avó, e sua sucessora, um dia terei que liderar a aldeia como uma sábia. O que você é em sua aldeia, Alice?

– Não vivo em uma aldeia e não sou nada onde vivo. – respondeu Alice lembrando-se de sua casa e sua cidade.

– Os humanos não vivem em aldeias? Não possui funções? Que coisa estranha.

– Muitos milênios antes do meu nascimento, eles viviam assim também. Com o tempo, proliferaram-se demais e ocuparam a maior parte da superfície do meu planeta. Vivo em um lugar que denominamos como cidade.

– Uma cidade e uma aldeia não seria a mesma coisa?

– Não. Aldeias são pequenas, cidades podem ser enormes, com quilômetros de extensão.

– O que seria quilômetro?

– É uma unidade de medida. Não usam unidades de medidas para medir as coisas?

– Não esses “quilômetros”. Vocês humanos são complicados demais! Você deve estar com fome e nós duas aqui perdendo tempo com detalhes, vamos procurar algo para você comer, venha.

Lyria levara Alice para a floresta novamente em busca de árvores frutíferas.

– Jamais coma as frutas de cores escuras, apenas as de cores claras são comestíveis. Isso se aplica também aos cogumelos e algumas raízes. Os frutos de cores quentes são doces, enquanto os de cores frias são amargos ou azedos, porém ambos são igualmente gostosos. Os frutos com florescência são especiais, eles podem lhe curar de alguma doença ou lhe dar mais poder por algum período. Não os coma demais, até remédios podem se tornar venenos se forem usados além da conta. – explicou Lyria – A partir de amanhã você seguirá sua jornada sozinha, precisa saber o que pode comer para saciar a fome. Se tiver alguma dúvida, observe os animais, eles lhe dirão quais são os alimentos comestíveis.
Alice escutou a explicação com atenção e memorizou tudo o que Lyria dizia, essas eram informações muito úteis para sua sobrevivência futura.

Ela estava se familiarizando com tudo aquilo aos poucos, vez ou outra, sentia suas habilidades se manifestando, embora não tivesse a pretensão de usá-las. Talvez mais alguns dias e já seria capaz de controlar suas habilidades.

– Por que vocês me ajudam, Lyria? Não passo de uma estranha e muitos da sua aldeia não gostam de minha presença, percebi isso quando vi a forma como todos me olhavam. – disse Alice certa vez enquanto caminhavam na floresta.

Lyria parou de caminhar e começou a fitar o horizonte. Então respondeu.

– Minha avó acredita que você salvará nosso povo. Você é uma criação dela, apenas uma criação dela... – a voz de Lyria ia diminuindo conforme pronunciava as palavras até parar de falar sem completar sua frase – Desculpe, proibiram-me falar. Você saberá tudo quando a hora chegar, por enquanto, apenas me acompanhe. Você precisa de um banho e novas roupas!

Então Lyria voltara a caminhar em direção à aldeia e Alice a seguira, em silêncio. Um banho quente já estava esperando por elas. A casa de banho ficava no primeiro nível, junto com outras casas comunitárias. Os banhos eram separados por horários, à tardinha aconteciam os banhos femininos enquanto à noitinha os masculinos. Normalmente, todas as mulheres tomavam banho juntas, mas naquele dia, Lyria e Alice tomaram seus banhos sem a companhia das outras aldeãs.

Lyria tagarelou durante todo o banho.

– Minha avó me disse que eu nasci em um campo de lírios e, como meus olhos eram da mesma cor que esta flor, minha mãe me nomeou como Lyria. Você conhece os lírios?

– Já ouvi falar, mas nunca os vi. Estão extintos em meu planeta.

A jovem de cabelos brancos e olhos lilases pegara alguns lírios e os colocou na água de seus banhos. Era uma piscina grande, porém rasa o suficiente para a água bater em seus pescoços enquanto estiverem sentadas.

Aquela casa de banho fazia Alice lembrar-se das descrições das antigas águas termais em seus livros ou animes. Contudo, também não existiam mais águas termais naturais em seu planeta, eram todas artificiais, aquecidas com algum aparelho eletrônico. Pela primeira vez em sua vida, ela gostaria de ter presenciado a época em que ainda os homens coexistiam com a natureza. Tudo o que um dia pertencera à natureza e fora de todos, agora era apenas algo exótico, em que somente os ricos poderiam usufruir. Era também o primeiro dia que experimentara uma fruta de verdade ou comidas feitas com alimentos naturais, até então só havia comido alimentos industrializados, em sua maioria, rações.

Quando terminaram o banho, trouxeram novas roupas para Alice. Suas calças jeans estavam sujas e rasgadas, os tênis surrados e a blusa branca passara para preta. As novas roupas eram de couro, uma calça, um corpete e botas. Uma armadura leve para uma andarilha que lhe proporcionaria agilidade e alguma proteção.

Era noite quando saíram da casa de banho. Alice vestia suas novas roupas e seu cabelo volumoso estava trançado em suas costas; já Lyria trajava um vestido na cor de seus olhos que ia até seus joelhos, usava um par de sandálias muito parecidas com as gregas da Terra e o cabelo estava solto. As outras jovens usavam vestidos brancos e sandálias gregas como Lyria, os idosos túnicas verdes como as folhas das árvores, os homens armaduras de couro e as crianças roupas variadas na cor marrom.

Todos os aldeões esperavam Lyria e Alice sentados próximos a grande fogueira. Observaram as duas desde o momento em que saíram da casa de banho até Alice sentar-se ao lado de Mewen e Lyria ir para frente de todos.

– Boa noite, meus irmãos e irmãs. Hoje, a nossa sábia, minha avó, escolheu-me para conduzir o festival do nosso nascimento em Mithra. Honrarei esta escolha com muita alegria e lisonjeio.

Todos prestavam muita atenção em Lyria. Alice estava surpresa com tudo o que via e espantada ao perceber que Lyria discursava na língua nativa daquele lugar e ela entendia tudo o que a jovem dizia.

– Há muitas eras, um velho homem temia que todo o conhecimento adquirido por ele durante toda sua vida fosse perdido para sempre. Tal conhecimento poderia ser usado por outros depois dele para ajudar aqueles necessitados, era como o nobre homem pensava. Ele escreveu dezenas de livros com seus conhecimentos e criou uma biblioteca para guardá-lo.

Enquanto Lyria contava a história, algumas pessoas encenavam a narração ao lado dela.

– Inicialmente, todos tinham acesso a tais livros. Compartilhar seu conhecimento e ajudar era a única coisa que desejava. Mas as pessoas eram perversas, muitos queriam a biblioteca somente para eles e seus propósitos perversos. O homem percebera que o conhecimento era como uma espada, poderia proteger aqueles que precisavam como ferir sem distinção, tudo dependeria do proposito daquele que o empunha. Era uma faca de dois gumes.

Um homem mascarado empunhava uma espada para algumas crianças mascaradas, encenando um ataque. As crianças suplicavam, aterrorizadas.

– Então, para impedir que usassem seu conhecimento para ferir, ele criou mecanismos para guarnecer a biblioteca. Mas isso não foi o suficiente, a ambição no coração do homem era grande e sem limites. Reinos brigavam entre si por tal conhecimento, mães matavam seus próprios filhos, maridos assassinavam suas esposas, mundos guerreavam entre si; todos almejavam apenas o conhecimento da biblioteca.

Outros homens e mulheres mascaradas apareciam no espetáculo, encenando matar uns aos outros. Todos pareciam descontrolados, obcecados, loucos. O terror e o caos pairando sobre todos.

– Com tristeza, o homem percebera o quão ingênuo fora. Para evitar um genocídio mútuo, ele retrocedeu o tempo para quando não existia a biblioteca e a escondeu em um mundo estéril. Destruir sua criação era como matar sua própria filha.

Os que fingiam de mortos levantaram e junto com os de pé encenaram não lembrar-se de nada. Estavam perdidos, olhavam uns para os outros sem entender o que tinha acontecido e porque suas roupas estavam furadas e sujas de sangue. Há quem jurava ter sonhado com uma guerra.

– O fim de seus dias estava chegando e com ele sua criação se encaminharia para o esquecimento e o nada. Sentia-se triste como um pai que perdera sua filha e de sua tristeza acontecera o milagre. Uma criança nascida da magia, dos sonhos de um solitário homem.

Todos abandonaram o palco, um homem idoso entrara segurando um bebê. Ele olhava-o com alegria nos olhos, como um pai olha para sua filha pela primeira vez.

– Mill, fora assim que ele a chamara, uma linda menina aparentemente humana. Este é o dia do nascimento de nossa mãe, nossa criadora. Mill crescera e a ela seu pai designara proteger aquele conhecimento em seu leito.

Uma jovem estava agora na frente de todos, segurando a mão de um homem deitado no chão. Ela chorava por tristeza.

Alice assistiu ao espetáculo, no inicio por interesse e curiosidade, mas longo da narração, sentia-se hipnotizada pela voz de Lyria. Os que não participaram da encenação cantavam uma melodia baixa e incompreensível enquanto a jovem narrava.

– O último desejo de seu pai era tudo para Mill. Ela o honraria com sua vida e protegeria aquela biblioteca até o dia de sua morte. Mas o tempo passava e Mill continuava viva e jovem, sua aparência jamais envelhecera depois dos vinte anos. Aquela eternidade a feria com sua solidão. Era contra os desejos de seu pai, mas ela criou Mithra a partir do nada para preencher aquela solidão. No inicio, criara apenas animais e plantas, mas percebeu que continuaria se sentido sozinha com eles. Então tentou criar pessoas.

Alice sentia-se tonta e estranha. Em um instante seu coração acelerava e martelava com fúria em seu peito, no estante seguinte ele parecia estar quase parado, depois voltava a martelar. Ela continuava vendo a apresentação do festival, mas já não escutava nada. Seu corpo não a obedecia, os olhos ficavam parados, atentos, a Lyria e o que ela falava, mesmo não ouvindo nada, enquanto seu corpo tombava no chão sem ela perceber.

Todos prestavam atenção a Lyria, não reagiam ao que acontecia a Alice, era como se ela não existisse para eles. Lyria continuava sua história e ao final dela sorrira, era um sorriso leve no canto de seus lábios. Alice sentia que era para ela.

Os aldeões continuavam cantando sua estranha melodia, mesmo quando Lyria terminara o espetáculo. Então a jovem, em pé ao lado da fogueira, disse a Alice.

– Jamais retire a pedra de seu pescoço, ela irá proteger seu coração.

Alice ouvira-a pronunciar mais alguma coisa que não entendera até perder sua consciência.


Quando Alice acordou, estava deitada no chão no mesmo lugar onde estivera assistindo ao espetáculo na noite anterior. A aldeia estava deserta, abandonada. Ela visitara todas as casas a procura dos aldeões sem ter sucesso.

Onde eles estariam? – pensou em voz alta. - Talvez todos estejam na margem do rio...

Ela andou em direção à margem do rio pelo mesmo caminho que fizera no dia anterior com Mewen. Ela andou cinco passos para fora da aldeia e virou-se para trás pensando ter ouvido algo, mas quando olhou, viu apenas a floresta. A aldeia havia desaparecido.

Instintivamente ela elevou a mão até o pescoço, onde encontrou um colar rude com uma pedra polida como pingente amarrada em uma espécie de corda. A recomendação de Lyria ecoava em sua cabeça.
Jamais retire a pedra de seu pescoço, ela irá proteger seu coração.

A pedra estava quente em sua mão e pulsava.

– O que diabos...?

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