Quando acordara, Alice se viu no meio de uma misteriosa floresta,
estivera deitada no chão, inconsciente, por algum tempo impreciso. A
floresta era vasta e um pouco densa, havia apenas árvores enormes e
outros tipos de vegetais até onde seus olhos pudessem ver, o que não era
muito, pois as copas das árvores mais altas impediam que a luz solar
chegasse ao solo com frequência.
Ao seu lado direito havia apenas
um pequeno córrego com água cristalina; ao seu lado esquerdo, via-se
apenas o verde das folhas, o marrom dos grossos troncos de árvores e um
tom envelhecido de amarelo das folhas caídas que perderam seu pigmento
esverdeado. Ela reconhecia algumas das espécies de árvores, como o
caucho, que outrora pertencera à vegetação de seu mundo, a Terra, e há
muito foram extintas pelo homem e sua ambição. Porém, não reconhecia a
maioria das árvores, algumas produziam frutos com fosforescência.
Alice
caminhou em direção à floresta, olhava para todos os lados,
desnorteada, não havia mais matas em seu mundo, os únicos vegetais de
terra firme existentes eram as plantações de grandes fazendeiros e o de
centros de pesquisas.
– O que diabos é isso? – perguntou-se, incrédula – Onde estou?
Sua
voz soara mais alto do que pretendia, emitindo ecos mata adentro, a
floresta parecia acordar à medida que sua voz se espalhava por ela. O
lugar estava vivo de alguma forma, sentia isso, muito diferente da
Terra, onde a fauna e flora pereceram.
Será que estava sonhando?
Tudo parecia tão surreal e, ao mesmo tempo, real. Alice não sabia dizer
se, de alguma forma, adormecera enquanto mexia em seu computador ou se
aquilo que seus olhos viam era realmente real. Se fosse real, como ela
fora parar naquele estranho e selvagem lugar? E por que não se lembrava
de nada após entrar eu seu computador?
Alguma coisa parecia ter
ouvido seus pensamentos, pois a floresta respondera a eles. Uma ventania
irrompeu tão forte que ela mal conseguia abrir os olhos, terra e folhas
voavam em sua direção. Instintivamente, levou os braços à cabeça, a fim
de proteger seus olhos, e projetou seu corpo para frente, para não cair
de costas no chão ou ser levada pelo vento. Então, houve um clarão e a
ventania parara tão rápido como começara.
Por um momento, ela
sentira-se cega com tanta incidência de luz em seus olhos, lacrimejava
toda vez que tentava abri-los. Levou algum tempo até conseguir se
acostumar com a luz, mas quando conseguiu, viu um rosto feminino
pairando a poucos metros de distância.
– Já consegue ver? – perguntou o rosto a Alice.
Alice acenou positivamente a cabeça, estava assustada demais para dizer qualquer coisa.
Aquele
rosto era ainda mais estranho que o lugar onde estava, ele era apenas
luz azul em forma do rosto de uma mulher, porém, era maior que uma
cabeça normal e translúcido. A forma luminosa terminava na altura do
pescoço da mulher. Poderia aquilo tudo ser realmente um sonho?
– Não, isto não é um sonho – respondeu a mulher como que lendo seus pensamentos – Você está em Mithra, bem vinda, Alice...
– Como sabe meu nome? E que lugar é esse? – interrompeu.
–
Eu sei tudo o que se passa nesse mundo, minha criança. Este planeta se
chama Mithra e, como pode ver, ainda é um lugar selvagem. Não existe
humanos aqui, assim como não existem civilizações tão organizadas e
estatais como em seu mundo, a Terra. Não tenha medo, com o tempo irá
aprender a apreciar o ar úmido das florestas, o verde vívido das
arvores, o barulho dos animais e todos os outros ruídos da natureza. É
uma pena que na Terra o homem destruiu toda essa beleza natural para
obter ainda mais dinheiro – havia tristeza em sua voz.
– Como sabe tudo isso: meu nome, de onde eu vim, como meu mundo é...?
–
Eu sei de muitas coisas e é por isso que você está aqui. Você foi
selecionada para participar desta pequena e divertida competição, se
ganhar, terá direito a realização de qualquer sonho seu, até aquele mais
impossível de todos. Tudo o que precisa fazer é chegar primeiro à minha
residência, a Biblioteca Mágica localizada na torre mais alta do
planeta. Você poderá vê-la em qualquer ponto do mundo, desde que consiga
ver o céu. Pegue isto, é um mapa mágico, ele te dirá onde você está com
um ponto vermelho e a biblioteca no ponto azul e há outras
funcionalidades na qual deverá descobrir sozinha.
Alice levantara
a mão para pegar o objeto que aparecera no ar, era uma fina pulseira
feita com um material na qual ela não sabia identificar. A medida era
perfeita para seu pulso.
– Você tem direito de escolher três
habilidades especiais para competir, pode ser habilidades físicas,
intelectuais, genéticas ou mesmo mágicas. Quais deseja ter?
Alice
pensou em quais habilidades escolher com cuidado, levou algum tempo até
se decidir. Por fim, escolhera aquelas que ela mais gostava nos
desenhos, filmes e séries de seu mundo e algo que poderia ser útil.
Muito bem, agora às regras. A competição é simples e suas regras igualmente:
1. Haverá momentos em que precisará lutar com outros competidores para decidir quem continuará no jogo.
2. O ganhador das batalhas entre competidores permanecerá na competição e o perdedor voltará ao seu mundo de origem.
3.
Por mais cruel ou sangrenta possa ser uma batalha, não haverá mortes,
todos aqueles que supostamente morrerem, regressarão imediatamente ao
seu mundo. Entretanto, ainda sentirão as dores físicas de uma batalha
feroz.
4. Ninguém começará dominando suas habilidades,
será preciso bastante treino. Para isso, você pode se aventurar nas
inúmeras aventuras que existem por ai, mas tenha cuidado, uma vez que
seja derrotada pelas criaturas do próprio mundo, você também voltará ao
seu mundo.
5. Há centenas de artefatos mágicos que podem
te ajudar durante a competição, seja melhorando suas habilidades ou te
dando novas. Você poderá consegui-los através de aventuras e exploração
ou derrotando outros competidores que tenha algum artefato.
Acho que isso é só, alguma dúvida?
– Como vejo o mapa nesse troço?
– Apenas aperte a pedra vermelha em seu centro. O mapa irá se projetar da pulseira até um tamanho visível.
Alice
apertou a pedra para testar o apetrecho. Um mapa projetou-se como a
mulher dissera, ele mostrava toda Mithra, as suas florestas, desertos,
quedas d’águas, cada pedaço do planeta.
– Isto parece uma...
– Superfície plana – completou a mulher – Mithra não é um mundo esférico como a Terra, é apenas uma grande superfície plana.
– E o que há depois dos extremos? – perguntou incrédula. A ideia de ser uma superfície plana era estranha demais para acreditar.
–
Veja você mesma – respondeu sorrindo – Agora se divirta, criança, e
pense no seu desejo com sabedoria, você tem até o fim da competição para
pensar.
Então, a forma luminosa de um rosto feminino
desaparecera instantaneamente, deixando Alice sozinha na silenciosa
floresta. Ela estava perdida, com sede e com fome, seu estômago lhe
implorava por comida, mas não sabia o que era comestível e o que poderia
ser venenoso. Também não sabia para onde ir, o que fazer ou mesmo como
utilizar suas habilidades.
Havia um córrego com água cristalina a
poucos metros ao sul, deveria ser suficiente para saciar sua sede e
enganar a fome até encontrar algo que possa comer. Ela caminhou até o
córrego enquanto examinava a pulseira que recebera.
A primeira
vista era apenas uma pulseira prateada simples com uma pedra vermelha em
seu centro, porém, havia várias superfícies clicáveis, algumas tão
pequenas que seria preciso usar a unha para acioná-las. Deveria ser as
tais funções da pulseira na qual ela deveria descobrir sozinha, pensou
Alice. Iria ver para o que serviam após saciar sua sede, ela já chegara
ao córrego.
Alice se ajoelhou na margem do córrego. A água estava
calma, conseguia ver seu reflexo com perfeição. Seus cabelos castanhos
claros estavam uma bagunça, folhas de árvores estavam presas entre
algumas madeixas; a pele clara de sua testa e de seu queixo estava
levemente acobreada, suja de terra, criando um grande contraste com o
resto do rosto.
– Ótimo, estou imunda.
Alice se aproximou,
esticou os braços e pegou um pouco de água com as mãos. Bebeu a água de
pouco em pouco até saciar sua sede, então começou a retirar as folhas
de seu cabelo, usando a superfície de água como um espelho.
Após
retirar todas as folhas, usou a água para limpar a terra de seu rosto,
devolvendo à sua pele o tom claro que sempre tivera. A água gelada lhe
dava sensações agradáveis, ela sempre gostou de temperaturas baixas e do
frio atmosférico. Sentia conforto no frio e náuseas no calor.
Ela
queria banhar-se naquelas águas e limpar a sujeira trazida pelo vento,
mas o leito do córrego era raso demais para um banho. O seu centro, que
era a parte mais profunda, não chegava aos seus joelhos, e ela não tinha
mais do que 1,65 metros de altura.
Alice estava perdida no
alívio que era aquela água gelada, mas um ruído surdo a interrompera.
Sentia um leve tremor no chão, quase imperceptível se não fosse pela
vibração causada na água. Seus ouvidos se atentaram ao ruído que se
aproximava, o tremor era cada vez maior e o ruído mais alto. Ouvi-o por
alguns minutos, então parou, para sua momentânea alegria.
Ela
ainda estava ajoelhada à margem do córrego quando ouviu um rugido a
poucos metros atrás dela. Virou a cabeça para trás, de vagar, para ver o
que era, os olhos verdes arregalados e fixos na criatura, seu coração
palpitando de forma anormal, ardendo em seu peito. Talvez não estivesse
completamente curada de seu problema cardíaco, mas aquela não era uma
boa hora para descobrir isso.
Era um animal atrás dela, parecia
um rinoceronte, porém mais alto. Deveria ter uma altura de três vezes o
tamanho dela, a pele era cinza e não havia um chifre perto de seu nariz,
no lugar, havia uma espécie de placa ou lâmina extremamente afiada,
capaz de cortar até uma folha enquanto estava em sua queda. O animal
rugiu ao vê-la, agitando sua longa e fina cauda atrás de seu enorme
corpo e revelando uma série de dentes afiados, diferente de dentes
comuns de herbívoros, que são chatos.
– Um rinoceronte carnívoro,
era só o que me faltava! – resmungou enquanto começava a correr o mais
rápido que podia. Nos primeiros passos, apoiou as mãos no chão para
manter o equilíbrio enquanto tentava correr e se levantar ao mesmo
tempo. O animal correu atrás dela, fitando-a com seus olhos de predador.
As
pernas estavam pesadas, a respiração estava difícil de manter e o
coração ardia demais em seu peito, mas continuou correndo, o mais rápido
que podia, com toda força que dispunha. Contudo, não era suficiente, o
animal estava se aproximando demais, mais um pouco estaria próximo o
bastante para o ataque.
Ver as árvores lhe deu uma ideia, isto a
daria apenas algum tempo a mais para fugir e não tinha certeza se iria
funcionar, mas era a única que tinha. Ela correu a uma velocidade menor,
permitindo que se aproximasse, mas ainda mantendo alguma distância.
Deixou que o animal a encurralasse, a sua frente havia uma árvore com
espesso tronco, deveria ser o suficiente para prender o animal por
alguns minutos.
Apesar de um pouco diferente, ainda tinha algumas
características de rinoceronte, o animal esfregou uma das patas no chão
quando percebeu que ela estava encurralada, embora ainda corresse. Os
olhos do animal transbordavam de fúria, e com esta fúria, ele correu
para cima dela, a placa afiada de couraça a uma altura que fosse fatal.
Quando
se aproximou o bastante, Alice rolou para o lado, esquivando-se do
ataque. A couraça afiada ficara presa na árvore, como ela planejara.
Então ela se levantou e continuou correndo na direção que o animal não
poderia vê-la e saber para onde vai enquanto ela continuava preso na
árvore, tentando se soltar com fúria.
Alice correu o máximo que
conseguiu, o máximo que podia forçar a continuar correr. A cada segundo
passado, mais suas pernas estavam pesadas, a respiração difícil, o
coração ardendo e a visão enevoando, mas ela continuou forçando, mas
agora caminhando. Não podia deixar que o animal a encontrasse, seria o
fim dela, mesmo que não morresse naquele mundo, ainda seria doloroso ser
comida de uma espécie de rinoceronte predador.
Seu coração era
fraco, os médicos de seu mundo a advertiram quando nascera. Os sintomas
haviam desaparecido enquanto crescera, mas vez ou outra eles voltavam e
ela se sentia tão fraca como seu coração, até que sua visão escurecia
completamente e ela desmaiava. Quando acordava, sentia-se melhor, porém,
ali não era lugar para desmaiar, poderia haver outros animais tão
perigosos como aquele ou piores. A ideia era assustadora, a mantinha
caminhando, mesmo com toda dificuldade que aquilo representava.
Ela
caminhou por algum tempo, no inicio corria, depois foi diminuindo a
velocidade até quase se arrastar. Então, um baque surdo de um corpo
caindo no chão assustou alguns pássaros das copas das árvores. Eles
voaram para bem longe, enquanto ela ficava caída no chão, inconsciente.
Quando
acordou, viu-se em uma casa simples e pequena, as paredes eram feitas
de grandes lascas de troncos de árvores e o piso de pedra lisa. Ela
estava deitada numa pequena cama de palha em um canto da minúscula casa.
Tentou se levantar, mas descobriu que ainda estava fraca demais e seus
membros pesados.
– Você precisa ficar em repouso por mais tempo,
criança humana. Seu coração não aguentará mais situações como a que te
fez desmaiar, ele está bem debilitado.
Escutava uma voz feminina
vinda do outro canto da casa, mas não conseguia ver quem era. O lugar
estava escuro demais para enxergar algo com precisão, tudo o que podia
identificar era a silhueta de uma mulher sentada em uma cadeira, não
muito longe dela.
– Quem é você?
Não ouve resposta, ao
invés disso, ouviu a mulher se levantar de sua cadeira e caminhar até
algum lugar, ouviu mais alguns ruídos até uma lamparina iluminar o resto
do lugar. A casa era simples e pequena, tinha apenas um cômodo, três
camas de palha, algumas prateleiras e uma cadeira. No lugar da porta
tinha uma cortina de pele e em uma das paredes uma janela, conseguia
vislumbrar um tênue luar de uma lua minguante, mais uma noite e seria
lua nova.
Quando a mulher se virou para Alice e voltou a
sentar-se em sua cadeira, percebeu que a mulher era na verdade uma
senhora e deveria ter algo próximo aos setenta anos de idade. Ela era um
pouco mais baixa do que os humanos em seu mundo e havia pequenas
protuberâncias em meio aos seus cabelos.
– Mewen, este é meu
nome. Os caçadores a encontraram desmaiada na floresta e a trouxeram
para cá. Você precisa descansar e comer alguma coisa, está dormindo há
dois dias.
Mewen levantou-se novamente de sua confortável cadeira e foi até a porta.
– Failari luthin ireth.
Ela
gritava ordens para alguém do lado de fora, Alice conseguia perceber
isso pelo tom de voz, mas não era capaz de entender uma única palavra,
era uma língua estranha para ela.
A menina humana permaneceu
sentada em sua cama por algum tempo, tentando ver o que acontecia do
lado de fora, tentando entender para onde a levaram e o que iriam fazer
com ela. As tentativas eram inúteis, ela sabia, não entendia a língua
daquelas pessoas e não tinha forças para se levantar, porém, algo
parecia hipnotizá-la de uma forma estranha. Sentia-se de alguma forma
bem, estava cansada e com fome, mas algo dentro dela estava se
recuperando.
A hipnose de Alice terminou quando Mewen lhe trouxe
um pouco de guisado para ela comer. Ela achara delicioso, só não sabia
se era porque realmente estava delicioso ou se era devido a sua grande
fome. Comeu até não restar uma única gota no vaso de barro.
– Obrigada... Que lugar é esse? – por fim, Alice perguntou a Mewen quando terminou de comer.
–
Uma pequena aldeia no meio da floresta, construída no interior de uma
clareira. Agora descanse, pois amanhã será um dia longo, humana.
Alice
obedecera à mulher e deitou-se em sua cama enquanto ela desaparecia na
escuridão da noite, provavelmente estava voltando para sua cama. Sentia o
corpo pesado e cansado no qual pedia algumas horas de sono, mas sua
mente estava dispersa demais para dormir. Aquele lugar, as pessoas e até
a própria língua ainda eram um mistério para ela.
Sua mente
estava inquieta demais para dormir, havia tantas perguntas sobre onde
supostamente estaria para nenhuma resposta. Ela ficou deitada, acordada,
por um longo tempo, pensando sobre tudo o que lhe acontecera naquele
dia. Contudo, após algum tempo, a inquietação de sua mente fora vencida
pelo cansaço de seu corpo, que lhe suplicava para dormir.
A
luz solar incidia intensamente sobre seus olhos quando acordou, quase
ofuscando sua visão, fora preciso alguns minutos para se acostumar com a
luz. O dia estava lindo lá fora, Alice percebera quando conseguiu
enxergar as coisas. Ela levantou-se de sua cama e começou a andar pela
casa, observando-a.
Com a luz do sol, ela conseguia ver melhor
onde estava, coisa que a noite com uma simples vela era difícil. Ela
estava em uma casa construída sobre uma grande árvore, a casa era maior
do que pensara na noite anterior, era feita completamente de madeira,
havia muitas camas de palhas no chão, prateleiras com lamparinas e
ampolas com líquidos estranhos, cada um com uma cor e textura diferente.
Após algum tempo observando, compreendeu que aquela casa deveria se
tratar de uma espécie de enfermaria.
A enfermaria suportava até
dez pacientes nos dez leitos espalhados pela casa e cerca de cinco
curandeiros sem sofrerem problemas com o espaço apertado. As ampolas
estavam em prateleiras pregadas no tronco da árvore, havia dezenas
delas.
Alice estivera tão atenta à observação daquela misteriosa
casa que a principio não percebera o barulho vindo do lado de fora.
Ouvia o barulho de muitas pessoas falando ao mesmo tempo na estranha
língua daquele lugar, de árvores sendo lenhadas e pedras sendo talhadas.
Por algum momento, ela se perguntou como não tinha ouvido aquele
barulho antes, estava alto demais para passar a despercebido.
Ela
caminhou até a saída daquela casa para ver o que estava acontecendo do
lado de fora. Ela afastou as cortinas de pele de algum animal com as
mãos e se abaixou um pouco para atravessar a porta, pois esta era menor
do que sua altura em uns dez centímetros. Havia uma sacada depois da
porta, não era muito larga nem muito estreita, deveria permitir a
passagem de três pessoas sem problemas algum. Ela parou na mureta de
madeira da sacada, contemplando a beleza da construção da aldeia.
A
aldeia fora construída em vários níveis ao redor de uma ampla clareira,
eram muitas casas nas árvores. A enfermaria estava a, pelo menos, seis
metros de altura, no terceiro nível da aldeia. Havia sete níveis no
total, sendo seis com casas e o sétimo, postos de sentinelas no topo das
árvores. O primeiro nível era o chão, e de lá partia os níveis
seguintes sempre a uma distancia média de dois metros entre um e outro.
As
escadas para subir ou descer um nível eram externas, ficavam entre as
casas e no máximo duas pessoas poderiam usá-la por vez. Existiam quatro
escadas no total, duas para descer o nível e duas para subir. Elas
também marcavam os principais pontos cardiais: norte, sul, leste e
oeste. Se uma escada para subir o nível se encontrava no norte, então a
outra também para subir estava no sul, enquanto as de descida estavam no
leste e no oeste. Desse modo, sempre haveria uma nova escada para
continuar a subida ou a descida se andasse noventa graus para qualquer
um dos lados.
O centro da aldeia era aberto e iluminado ao sol de
meio dia, não havia construção alguma no chão, apenas uma grande
fogueira, onde se reunia muitos aldeões. Outros estavam espalhados pelos
níveis da aldeia desempenhando seus papeis na comunidade. Naquela
aldeia, todos faziam alguma coisa, as crianças aprendiam e ajudavam os
adultos em algumas tarefas, os adultos desempenhavam suas funções na
comunidade e os mais velhos ensinavam as crianças. As tarefas eram
variadas; caça, pesca, colheita, preparação da comida eram algumas
delas.
Quando se deu conta, todos os aldeões estavam parados
olhando para ela, encarando-a. A pressão daqueles olhares era grande,
mas Alice não se intimidou. Ela procurou a mulher que lhe fora
hospitaleira e se encaminhou até ela, observando a aldeia de vários
ângulos e níveis diferentes. Achara incrível como um povo que não tinha
qualquer conhecimento tecnológico conseguira construir uma aldeia como
aquela, sustentada pelas árvores e de maneira a parecer que as árvores
ao redor da clareira eram uma única coisa.
Mewen estava no
primeiro nível, próximo a grande fogueira gritando ordens para aqueles a
sua volta em sua língua quando Alice se aproximara. Ela era a única que
parecia estar contente por ver Alice.
– Você se recupera rápido, humana. – gargalhou – Agora venha comigo.
Ela
seguiu a mulher, tentando acompanhá-la, ela andava rápido para a idade
que deveria ter. Os nativos observaram as duas irem embora calados e
parados, ela sentia os olhares sobre ela de suas costas.
Elas
adentraram a floresta, mas não foram muito distante da aldeia.
Caminharam alguns metros mata adentro e pararam quando chegaram a um
grande rio. O rio dividia aquela floresta em duas partes e era nele que
desembocava todos os outros rios menores com olhos d’água no interior da
floresta. As margens eram largas e o leito muito profundo, seria
necessário uma grande embarcação para atravessá-lo.
Próximo à
margem estava uma jovem colhendo algumas plantas que cresciam naquele
lugar. Mewen gritou alguma coisa e ela se virou, então começou a
caminhar na direção da mulher idosa e de Alice.
– Criança humana,
esta é minha neta Lyria, ela te ajudará em sua estadia em nossa aldeia.
Preciso voltar para a aldeia agora, deixarei as duas sozinhas por hora.
- Mewen se afastara entrando na floresta novamente.
Lyria
deveria ter a mesma idade que Alice, dezessete anos, porém, era mais
baixa, deveria medir algo próximo a 1,4 metros. Era uma jovem energética
e alegre, os cabelos eram ondulados e iam até sua cintura, a metade
deles estavam presos atrás de sua cabeça com flores que Alice
desconhecia. Seus olhos eram da mesma cor que a flor em seu cabelo,
lilás, e a pele e a cor dos cabelos eram brancos como o luar.
–
Então você é a humana que todos andam comentando desde a sua chegada.
Estava curiosa para saber como era, mas minha avó não deixava ninguém se
aproximar de você até se recuperar. Pensava que os humanos fossem mais
altos, com o dobro da minha altura, e mais ferozes, mas você é apenas
uma garota como eu e todas as outras da aldeia, só que um pouco mais
alta. Qual seu nome, humana?
– Alice...
Lyria analisava-a de cima a baixo com uma cesta com ervas em uma das mãos e a outra na cintura, memorizando o nome e o rosto.
–
Como minha avó lhe disse, chamo-me Lyria. Sou uma sacerdotisa, como
minha avó, e sua sucessora, um dia terei que liderar a aldeia como uma
sábia. O que você é em sua aldeia, Alice?
– Não vivo em uma aldeia e não sou nada onde vivo. – respondeu Alice lembrando-se de sua casa e sua cidade.
– Os humanos não vivem em aldeias? Não possui funções? Que coisa estranha.
–
Muitos milênios antes do meu nascimento, eles viviam assim também. Com o
tempo, proliferaram-se demais e ocuparam a maior parte da superfície do
meu planeta. Vivo em um lugar que denominamos como cidade.
– Uma cidade e uma aldeia não seria a mesma coisa?
– Não. Aldeias são pequenas, cidades podem ser enormes, com quilômetros de extensão.
– O que seria quilômetro?
– É uma unidade de medida. Não usam unidades de medidas para medir as coisas?
–
Não esses “quilômetros”. Vocês humanos são complicados demais! Você
deve estar com fome e nós duas aqui perdendo tempo com detalhes, vamos
procurar algo para você comer, venha.
Lyria levara Alice para a floresta novamente em busca de árvores frutíferas.
–
Jamais coma as frutas de cores escuras, apenas as de cores claras são
comestíveis. Isso se aplica também aos cogumelos e algumas raízes. Os
frutos de cores quentes são doces, enquanto os de cores frias são
amargos ou azedos, porém ambos são igualmente gostosos. Os frutos com
florescência são especiais, eles podem lhe curar de alguma doença ou lhe
dar mais poder por algum período. Não os coma demais, até remédios
podem se tornar venenos se forem usados além da conta. – explicou Lyria –
A partir de amanhã você seguirá sua jornada sozinha, precisa saber o
que pode comer para saciar a fome. Se tiver alguma dúvida, observe os
animais, eles lhe dirão quais são os alimentos comestíveis.
Alice
escutou a explicação com atenção e memorizou tudo o que Lyria dizia,
essas eram informações muito úteis para sua sobrevivência futura.
Ela
estava se familiarizando com tudo aquilo aos poucos, vez ou outra,
sentia suas habilidades se manifestando, embora não tivesse a pretensão
de usá-las. Talvez mais alguns dias e já seria capaz de controlar suas
habilidades.
– Por que vocês me ajudam, Lyria? Não passo de uma
estranha e muitos da sua aldeia não gostam de minha presença, percebi
isso quando vi a forma como todos me olhavam. – disse Alice certa vez
enquanto caminhavam na floresta.
Lyria parou de caminhar e começou a fitar o horizonte. Então respondeu.
– Minha avó acredita que você salvará nosso povo. Você é uma criação dela,
apenas uma criação dela... – a voz de Lyria ia diminuindo conforme
pronunciava as palavras até parar de falar sem completar sua frase –
Desculpe, proibiram-me falar. Você saberá tudo quando a hora chegar, por
enquanto, apenas me acompanhe. Você precisa de um banho e novas roupas!
Então
Lyria voltara a caminhar em direção à aldeia e Alice a seguira, em
silêncio. Um banho quente já estava esperando por elas. A casa de banho
ficava no primeiro nível, junto com outras casas comunitárias. Os banhos
eram separados por horários, à tardinha aconteciam os banhos femininos
enquanto à noitinha os masculinos. Normalmente, todas as mulheres
tomavam banho juntas, mas naquele dia, Lyria e Alice tomaram seus banhos
sem a companhia das outras aldeãs.
Lyria tagarelou durante todo o banho.
–
Minha avó me disse que eu nasci em um campo de lírios e, como meus
olhos eram da mesma cor que esta flor, minha mãe me nomeou como Lyria.
Você conhece os lírios?
– Já ouvi falar, mas nunca os vi. Estão extintos em meu planeta.
A
jovem de cabelos brancos e olhos lilases pegara alguns lírios e os
colocou na água de seus banhos. Era uma piscina grande, porém rasa o
suficiente para a água bater em seus pescoços enquanto estiverem
sentadas.
Aquela casa de banho fazia Alice lembrar-se das
descrições das antigas águas termais em seus livros ou animes. Contudo,
também não existiam mais águas termais naturais em seu planeta, eram
todas artificiais, aquecidas com algum aparelho eletrônico. Pela
primeira vez em sua vida, ela gostaria de ter presenciado a época em que
ainda os homens coexistiam com a natureza. Tudo o que um dia pertencera
à natureza e fora de todos, agora era apenas algo exótico, em que
somente os ricos poderiam usufruir. Era também o primeiro dia que
experimentara uma fruta de verdade ou comidas feitas com alimentos
naturais, até então só havia comido alimentos industrializados, em sua
maioria, rações.
Quando terminaram o banho, trouxeram novas
roupas para Alice. Suas calças jeans estavam sujas e rasgadas, os tênis
surrados e a blusa branca passara para preta. As novas roupas eram de
couro, uma calça, um corpete e botas. Uma armadura leve para uma
andarilha que lhe proporcionaria agilidade e alguma proteção.
Era
noite quando saíram da casa de banho. Alice vestia suas novas roupas e
seu cabelo volumoso estava trançado em suas costas; já Lyria trajava um
vestido na cor de seus olhos que ia até seus joelhos, usava um par de
sandálias muito parecidas com as gregas da Terra e o cabelo estava
solto. As outras jovens usavam vestidos brancos e sandálias gregas como
Lyria, os idosos túnicas verdes como as folhas das árvores, os homens
armaduras de couro e as crianças roupas variadas na cor marrom.
Todos
os aldeões esperavam Lyria e Alice sentados próximos a grande fogueira.
Observaram as duas desde o momento em que saíram da casa de banho até
Alice sentar-se ao lado de Mewen e Lyria ir para frente de todos.
–
Boa noite, meus irmãos e irmãs. Hoje, a nossa sábia, minha avó,
escolheu-me para conduzir o festival do nosso nascimento em Mithra.
Honrarei esta escolha com muita alegria e lisonjeio.
Todos
prestavam muita atenção em Lyria. Alice estava surpresa com tudo o que
via e espantada ao perceber que Lyria discursava na língua nativa
daquele lugar e ela entendia tudo o que a jovem dizia.
– Há
muitas eras, um velho homem temia que todo o conhecimento adquirido por
ele durante toda sua vida fosse perdido para sempre. Tal conhecimento
poderia ser usado por outros depois dele para ajudar aqueles
necessitados, era como o nobre homem pensava. Ele escreveu dezenas de
livros com seus conhecimentos e criou uma biblioteca para guardá-lo.
Enquanto Lyria contava a história, algumas pessoas encenavam a narração ao lado dela.
–
Inicialmente, todos tinham acesso a tais livros. Compartilhar seu
conhecimento e ajudar era a única coisa que desejava. Mas as pessoas
eram perversas, muitos queriam a biblioteca somente para eles e seus
propósitos perversos. O homem percebera que o conhecimento era como uma
espada, poderia proteger aqueles que precisavam como ferir sem
distinção, tudo dependeria do proposito daquele que o empunha. Era uma
faca de dois gumes.
Um homem mascarado empunhava uma espada para
algumas crianças mascaradas, encenando um ataque. As crianças
suplicavam, aterrorizadas.
– Então, para impedir que usassem seu
conhecimento para ferir, ele criou mecanismos para guarnecer a
biblioteca. Mas isso não foi o suficiente, a ambição no coração do homem
era grande e sem limites. Reinos brigavam entre si por tal
conhecimento, mães matavam seus próprios filhos, maridos assassinavam
suas esposas, mundos guerreavam entre si; todos almejavam apenas o
conhecimento da biblioteca.
Outros homens e mulheres mascaradas
apareciam no espetáculo, encenando matar uns aos outros. Todos pareciam
descontrolados, obcecados, loucos. O terror e o caos pairando sobre
todos.
– Com tristeza, o homem percebera o quão ingênuo fora.
Para evitar um genocídio mútuo, ele retrocedeu o tempo para quando não
existia a biblioteca e a escondeu em um mundo estéril. Destruir sua
criação era como matar sua própria filha.
Os que fingiam de
mortos levantaram e junto com os de pé encenaram não lembrar-se de nada.
Estavam perdidos, olhavam uns para os outros sem entender o que tinha
acontecido e porque suas roupas estavam furadas e sujas de sangue. Há
quem jurava ter sonhado com uma guerra.
– O fim de seus dias
estava chegando e com ele sua criação se encaminharia para o
esquecimento e o nada. Sentia-se triste como um pai que perdera sua
filha e de sua tristeza acontecera o milagre. Uma criança nascida da
magia, dos sonhos de um solitário homem.
Todos abandonaram o
palco, um homem idoso entrara segurando um bebê. Ele olhava-o com
alegria nos olhos, como um pai olha para sua filha pela primeira vez.
–
Mill, fora assim que ele a chamara, uma linda menina aparentemente
humana. Este é o dia do nascimento de nossa mãe, nossa criadora. Mill
crescera e a ela seu pai designara proteger aquele conhecimento em seu
leito.
Uma jovem estava agora na frente de todos, segurando a mão de um homem deitado no chão. Ela chorava por tristeza.
Alice
assistiu ao espetáculo, no inicio por interesse e curiosidade, mas
longo da narração, sentia-se hipnotizada pela voz de Lyria. Os que não
participaram da encenação cantavam uma melodia baixa e incompreensível
enquanto a jovem narrava.
– O último desejo de seu pai era tudo
para Mill. Ela o honraria com sua vida e protegeria aquela biblioteca
até o dia de sua morte. Mas o tempo passava e Mill continuava viva e
jovem, sua aparência jamais envelhecera depois dos vinte anos. Aquela
eternidade a feria com sua solidão. Era contra os desejos de seu pai,
mas ela criou Mithra a partir do nada para preencher aquela solidão. No
inicio, criara apenas animais e plantas, mas percebeu que continuaria se
sentido sozinha com eles. Então tentou criar pessoas.
Alice
sentia-se tonta e estranha. Em um instante seu coração acelerava e
martelava com fúria em seu peito, no estante seguinte ele parecia estar
quase parado, depois voltava a martelar. Ela continuava vendo a
apresentação do festival, mas já não escutava nada. Seu corpo não a
obedecia, os olhos ficavam parados, atentos, a Lyria e o que ela falava,
mesmo não ouvindo nada, enquanto seu corpo tombava no chão sem ela
perceber.
Todos prestavam atenção a Lyria, não reagiam ao que
acontecia a Alice, era como se ela não existisse para eles. Lyria
continuava sua história e ao final dela sorrira, era um sorriso leve no
canto de seus lábios. Alice sentia que era para ela.
Os aldeões
continuavam cantando sua estranha melodia, mesmo quando Lyria terminara o
espetáculo. Então a jovem, em pé ao lado da fogueira, disse a Alice.
– Jamais retire a pedra de seu pescoço, ela irá proteger seu coração.
Alice ouvira-a pronunciar mais alguma coisa que não entendera até perder sua consciência.
Quando
Alice acordou, estava deitada no chão no mesmo lugar onde estivera
assistindo ao espetáculo na noite anterior. A aldeia estava deserta,
abandonada. Ela visitara todas as casas a procura dos aldeões sem ter
sucesso.
Onde eles estariam? – pensou em voz alta. - Talvez todos estejam na margem do rio...
Ela
andou em direção à margem do rio pelo mesmo caminho que fizera no dia
anterior com Mewen. Ela andou cinco passos para fora da aldeia e
virou-se para trás pensando ter ouvido algo, mas quando olhou, viu
apenas a floresta. A aldeia havia desaparecido.
Instintivamente
ela elevou a mão até o pescoço, onde encontrou um colar rude com uma
pedra polida como pingente amarrada em uma espécie de corda. A
recomendação de Lyria ecoava em sua cabeça.
Jamais retire a pedra de seu pescoço, ela irá proteger seu coração.
A pedra estava quente em sua mão e pulsava.
– O que diabos...?
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